Vírus é um desafio de saúde pública contornado por meio de geografia e estatística. A questão central é identificar a sua localização e a probabilidade de contágio. É assim desde que Sir John Snow criou o primeiro Sistema de Informação Geográfica para mapear a cólera, na Londres de 1854. Cólera é infecção bacteriana, não é vírus. Mas a lógica é a mesma: o contágio depende de proximidade e das condições de prevenção. O século 21 traz a disrupção e o uso de algoritmos digitais como novidade.
O romance distópico “1984”, de George Orwell, tornou-se quase um conto infantil perante a realidade. A torre do presídio corresponde agora às constelações de satélites em operação, que tudo veem e identificam, sem que tenhamos necessariamente uma sentença transitada em julgado para estarmos presos a este sistema. Os telemóveis, com a forma do monólito orwelliano, exercem a contraparte desses satélites e, por meio da sedução e da vontade de sermos reconhecidos por nossas virtudes nas redes sociais, possibilitam entregarmos dados, imagens, músicas, contactos, enfim, informações valiosíssimas. Cruzadas com os nossos dados fiscais, estatísticos, médicos, educacionais e políticos, produzem uma inesgotável fonte de conhecimento individual e – por meio de seu conjunto – da coletividade nacional.
Latitude e longitude passaram a ter valor económico. A utilização do geodado como fonte de lucro faz com que a geoinformação deixe de ser apenas uma tecnologia, ou mesmo um mercado, mas passe a ser também um direito. Temos direito, enquanto espécie, a sermos geoinformados. A Constituição da República Portuguesa traz consigo algumas pistas sobre como dar o devido tratamento à correta localização das atividades, em seu sentido mais amplo, que é a premissa do direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado (art. 66º, 2, b).
Ao marcar o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, pediu que criemos mecanismos para lidar com o que chamou de “infodemia”. Colocar esta ideia em prática significa tornar o direito à geoinformação o princípio norteador das atividades de autoridades geográficas, exercidas em Portugal pela Direção-Geral do Território. Afinal, as Infraestruturas de Dados Espaciais instaladas mundo afora para transformar os sistemas de mapeamento em setores de infraestrutura – tornando o mapa uma essential facility e não uma propriedade intelectual – não estão a resultar isoladamente.
A Covid-19 recusa aos organismos geográficos um protagonismo que está a ser exercido pelas empresas de telemóveis, já que não basta universalizar a informação territorial e torná-la interoperável. A geografia resultante da geoinformação dos telemóveis é dinâmica e os órgãos geográficos até já possuem uma visão digital, mas não disruptiva, do seu papel nos tempos atuais. Somos peixes coloridos no aquário do Estado, mas não “geoescravos”, para usar uma expressão de Dobson. Temos o direito ao esquecimento algorítmico pela autodeterminação informativa, se assim o desejarmos. As empresas podem dar um enorme contributo ao desenvolverem práticas de geocompliance, de maneira a criar um quadro do que pode e do que não pode ser disponibilizado.
Temas como metadados, destruição de dados, inteligência artificial, modelos preditivos, monitorização, entre outros, vão enquadrar a discussão dos próximos anos. Ainda não há certeza para onde os ventos nos levarão, mas podemos afirmar categoricamente que já não há justificações plausíveis para defender um sistema geográfico dissociado das informações geradas online pelos telemóveis. Cabe ao Estado dar uma resposta a este desafio de governança pública. E ao cidadão, exigir esse direito.