A eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos não foi meramente o epílogo de uma contenda eleitoral singularmente polarizadora, mas o prólogo de um reordenamento global cuja profundidade apenas começa a revelar-se, como o contorno de um abismo subitamente iluminado. Este evento não deve ser lido como uma alteração circunstancial das dinâmicas políticas ou económicas, mas antes como uma subversão tectónica das fundações que sustentam a ordem internacional. Trump não é apenas um líder, mas o arauto de uma nova cosmovisão política: audaciosa na sua rutura, incognoscível nos seus desígnios e intrinsecamente transacional no modo como redefine o conceito de poder. Aquilo que parecia sólido e perene dissolve-se agora na fluidez de uma incerteza implacável, e a União Europeia, atormentada pelos seus próprios dilemas internos, revela-se incapaz de responder à magnitude desta transformação.
O que durante a campanha se apresentava como protecionismo rudimentar emerge agora como um instrumento de cálculo frio, manejado por um estratega que emprega a imprevisibilidade como arma política. Os primeiros alvos desta política são emblemáticos: Canadá e México, vizinhos próximos e parceiros tradicionais, são arrastados para o epicentro de um jogo de coerção sem precedentes. A sombra das tarifas alfandegárias ergue-se como uma ameaça latente, e embora não definitiva, carrega em si o peso de uma imposição quase inevitável. A rota para a reconciliação é estreita e obstruída por exigências draconianas, como o controle absoluto da imigração e o cerceamento do narcotráfico, emulando uma humilhação diplomática que transcende a economia e redefine as hierarquias regionais.
Do outro lado do Pacífico, a China, identificada como o antagonista supremo na retórica eleitoral, enfrenta um ataque mais matizado, embora não menos calculado. O incremento tarifário de 10% — uma fração dos draconianos 100% prometidos — não é um sinal de apaziguamento, mas uma advertência sibilina, um movimento estratégico que mantém Pequim em permanente estado de alerta. A mensagem é clara: a contenção atual é efêmera, e a mão que hoje hesita poderá esmagar amanhã com severidade inexorável.
Porém, é na Europa que o drama adquire contornos quase trágicos. A União Europeia, outrora emblema de estabilidade e visão estratégica, mostra-se uma entidade exaurida, uma relíquia de um ideal cuja força vital parece desvanecer-se. A proposta de Christine Lagarde — ampliar as importações de gás natural liquefeito e armamento norte-americano — reflete uma tentativa desesperada de se alinhar com as prioridades de Trump, oferecendo lucros tangíveis que ele pode transmutar em capital político. Contudo, esta tentativa revela-se fútil, presa nos labirintos das debilidades internas do bloco.
Na Alemanha, o colapso da coligação governamental e a iminência de eleições antecipadas mergulham a potência europeia num vórtice de paralisia política. A economia, já pressionada por desafios estruturais, resvala ainda mais sob o impacto da desaceleração chinesa e da ameaça de uma guerra comercial transatlântica. Berlim, outrora o motor indomável da União Europeia, balança ao ritmo de crises que se propagam como ondas de choque pelo continente.
Enquanto isso, a França enfrenta as suas próprias tormentas. Emmanuel Macron, outrora celebrado como o profeta de uma renovação estrutural, encontra-se aprisionado numa armadilha de paralisia política e descontentamento popular. O défice orçamental, que ultrapassou os 6% do PIB, e a dívida pública, que alcançou uns insustentáveis 112%, evocam os piores fantasmas da crise da zona euro. A espiral ascendente das taxas de juro enreda o país
num ciclo de constrição financeira que torna as reformas necessárias tanto inevitáveis quanto politicamente fatais.
A conjugação destas fragilidades nos dois pilares fundadores da União — Alemanha e França — condena o bloco a uma fragmentação quase ontológica. Ursula von der Leyen, por mais hercúleo que seja o seu esforço, encontra-se limitada pelas próprias engrenagens burocráticas da União Europeia. A tomada de decisões cruciais é paralisada por Estados-membros cujas crises domésticas anulam qualquer aspiração a uma visão coletiva. No Leste, a aproximação estratégica a Washington fragmenta ainda mais o núcleo ocidental. O Sul, imerso em dificuldades económicas, encontra-se irremediavelmente enfraquecido, enquanto o Norte, enredado num pragmatismo indiferente, desmantela qualquer tentativa de unidade.
Neste contexto, Trump atua com a perspicácia de um predador meticuloso, explorando fragilidades com uma mestria que beira o instintivo. Cada concessão arrancada à Europa transcende o valor económico imediato; é uma validação da sua crença na obsolescência do multilateralismo, um símbolo de que a ordem internacional, como a conhecemos, está a desmoronar-se. Para Trump, aliados são um conceito arcaico; existem apenas interesses momentâneos e vantagens a extrair.
O mundo entra numa era de desagregação, onde a lógica do “cada um por si” impera com vigor desumanizante. A União Europeia, perante a sua crise mais existencial, encontra-se num ponto de inflexão. Ou resgata a sua relevância geopolítica e se reinventa como força catalisadora no xadrez global, ou capitula à irrelevância, abrindo espaço para potências emergentes como China, Rússia, Índia e Brasil moldarem o século XXI.
Este não é apenas um capítulo de transição, mas um instante axial na história contemporânea. O destino da Europa determinará se o futuro será erguido sobre os alicerces da cooperação internacional ou se sucumbirá ao caos competitivo de um mundo desregulado. Trump não é o criador desta tempestade; é o arauto de uma desordem inevitável, cujos ventos já começaram a soprar, redesenhando inexoravelmente o equilíbrio de poder global.