A Justiça moçambicana está a passar por uma tremenda saia justa, após um dos juízes do Tribunal Supremo usar leis revogadas, incluindo uma datada de 1886 (sim, 1886!!!), para solicitar o “consentimento da Assembleia da República” para prender preventivamente o deputado Manuel Chang, a pedido do governo da Frelimo, partido no poder em Moçambique.
O antigo ministro das Finanças de Moçambique está a ser ouvido por um tribunal da África do Sul, onde foi detido em Dezembro quando estava em trânsito para o Dubai, e está agora a lutar para evitar ser extraditado para os Estados Unidos.
Um tribunal de Nova Iorque pretende julgá-lo num processo relacionado com fraude financeira e lavagem de dinheiro eventualmente das dívidas ilegais que Moçambique contraiu em 2013. A Justiça nova iorquina refere que parte do dinheiro do empréstimo terá sido depositado em bancos locais violando a legislação económica e financeira norte-americana.
No entanto, o governo de Moçambique quer que o militante da Frelimo seja ouvido pela Justiça moçambicana também num outro processo que envolve a empresa brasileira Odebrecht no qual o ex-ministro é acusado de receber subornos e ter depositado o valor num banco suíço.
Contudo, o entendimento geral em Moçambique é o de que o argumento usado pelo executivo moçambicano visa impedir que aquele membro sénior da Frelimo – um ex-ministro das Finanças e actualmente deputado do partido que dirige o país – seja extraditado para os Estados Unidos no âmbito do processo ligado às dívidas ilegais.
Acontece que Moçambique não tem nenhum acordo de extradição com os Estados Unidos que, por seu turno, tem com a África de Sul.
O que até aqui não se compreende e que a Frelimo devia explicar é o racional dessa decisão do partido que dirige o governo em primar pela lei de maior esforço travando uma batalha jurídica para julgar o deputado no território nacional quando pode simplificar o processo aplicando as normas internas do partido que impeçam Manuel Chang de continuar no Parlamento, podendo desta forma ser detido e julgado livremente.
Desde a sua fundação, em 1962, a Frelimo sempre procurou projectar a imagem de um partido que se guia pelos estatutos internos para resolver os casos de violação cometidos pelos seus membros. Nos últimos anos, a quase totalidade dos partidários dessa organização política que em algum momento cometeu infracção e viu o seu processo-crime ser tratado em sede de tribunal já não exercia cargo relevante que possibilitasse ter imunidade. Manuel Chang é o primeiro militante daquela formação política que ainda exerce uma função pública com direito a imunidade e que está a braços com a Justiça dentro e fora do país.
No artigo 13 relativo à Tipificação das Sanções, os estatutos da Frelimo são claros, pois prevêem a expulsão de qualquer membro cuja conduta “acarrete sério prejuízo ao prestígio e bom nome do Partido”.
Os regulamentos internos da Frelimo também invocam a “suspensão da qualidade de membro do Partido, por período não superior a um ano”, se este desrespeitar os princípios programáticos essenciais e a linha política da organização. Processualmente, essa medida segue uma ordem de gravidade, cujas sanções são: primeiramente, adverte-se, a seguir, aplica-se a repreensão registada e, por último, decide-se pela expulsão do militante.
Embora se saiba que toda a dinâmica parlamentar da bancada da Frelimo, em caso de grandes decisões, seja consertada junto da direcção máxima da organização, o partido no poder em Moçambique não optou pela aplicação das regras internas baseadas nos seus estatutos para resolver o chamado “caso Chang”. Primou pela “colaboração” com a Justiça moçambicana socorrendo-se no argumento de que respeita a separação de poderes, e deixou a decisão final para os órgãos de soberania, nomeadamente o Tribunal Supremo, cujo juiz da causa aplicou leis já revogadas para fundamentar o pedido ao Parlamento, cometendo assim um dos maiores erros da História do Direito desde que Moçambique se conhece como Estado de Direito Democrático.
Mas o que está realmente em jogo nesse processo de extradição de Manuel Chang é o futuro da própria Frelimo e a restituição da credibilidade da Justiça moçambicana. Essa batalha campal passa por conseguir mover cautelosamente o peão nesse tabuleiro cujo jogo será vencido por quem souber controlar a partida até ao fim, ou seja, apenas um dos tribunais de três países diferentes. Isso porque qualquer movimento em falso, a Justiça norte-americana, especialmente, pode fazer agitar os alicerces daquela organização política cinquentenária e, quiçá, de todo Estado moçambicano.
Manuel Chang foi ministro das Finanças durante dez anos, pelo que detém informações sensíveis relacionadas com a segurança do Estado moçambicano. Contudo, diante dos juízes norte-americanos, pode ser obrigado a desvendar essas informações ao tribunal de uma Nação poderosa com interesses em Moçambique, quando esse país africano, por sua vez, também pretende reaver o dinheiro das dívidas ilícitas a favor dos cofres moçambicanos.
Daí que, nessa quarta-feira, de forma célere, o Tribunal Supremo moçambicano emitiu um mandado de prisão contra Manuel Chang, após ter solicitado o “consentimento da Assembleia da República para a prisão preventiva” do deputado. Em resposta, a Comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e de Legalidade, dirigida por um membro da Frelimo, deu luz verde à prisão preventiva do parlamentar, argumentando que estão “reunidos os fundamentos, pressupostos e requisitos constitucionais para que a Assembleia da República possa consentir a prisão preventiva do deputado Manuel Chang”.
No entanto, as bancadas da oposição na Assembleia da República escusaram deliberar a favor do pedido que o Tribunal Supremo enviou ao Parlamento, por considerar que não tendo sido levantada a imunidade do ainda deputado não se pode apelar para, nem emitir um mandado de prisão preventiva contra um parlamentar que continua a gozar dessa prerrogativa.
Apesar de ainda não ter sido constituído réu quer em Moçambique, quer fora do país, a Frelimo reconhece que Manuel Chang possa ter cometido crimes de que é acusado. Aliás, algumas figuras de relevo no seio do partido já admitiram isso publicamente.
Acontece que mesmo que os estatutos da Frelimo sejam peremptórios quanto ao tipo de medidas punitivas a aplicar para quem transgrida regras internas, que podem ir até à “desafectação das funções ou da qualidade de membro de órgão do Partido”, não se sabe ao certo o que motiva aquela organização a sonegar esse direito de expulsão do seu membro.
No entanto, uma forte hipótese pode ser levantada: a Frelimo não quer expulsar um membro por corrupção por estar consciente de que essa medida pode abrir precedentes de ter de assistir um “arrastão” de mais militantes ligados aos crimes de que Chang é indiciado, sobretudo, fora do país.
O partido Frelimo tem noção de que está sem norte e também está ciente do impacto que um julgamento de Manuel Chang fora de Moçambique pode ter neste momento.
Sendo o ainda deputado uma peça fundamental no processo levado a cabo por um tribunal de Nova Iorque (pois na altura da contratação das dívidas ilegais era ministro das Finanças), o ex-dirigente pode oferecer-se para ser um delator colaborando com a Justiça norte-americana e desvendar mais do que se possa imaginar e esperar.
E se isso acontecer, a Frelimo sabe muito bem que as declarações do ex-ministro das Finanças podem, à partida, fazer esfumar quaisquer possibilidades de reeleição do partido no poder em Outubro próximo, quando o país está prestes a começar a explorar, a partir de 2023, um dos recursos minerais que deverá catapultar a economia de Moçambique: o gás.
Actualmente, os índices de popularidade do Governo são dos mais baixos desde que a Frelimo assumiu o poder em 1975, ano da independência.
Embora o sector da Justiça moçambicana assegure ter condições para julgar o ex-ministro no processo-crime ligado à empresa brasileira sobre branqueamento de capitais, burla por defraudação, abuso de cargo ou funções, peculato e violação da legalidade orçamental, a Frelimo tem consciência de que internamente não existe nenhum perigo deste ou de algum dos membros do partido ser implicado, porque desde a independência que a Justiça nacional está cooptada pelo poder político controlado pela própria Frelimo.
Apesar da complexidade do caso e da gravidade das acusações que pesam sobre Manuel Chang nos dois casos, uma eventual extradição do deputado para Moçambique seria, por um lado, a garantia de que o processo-crime que corre em Maputo teria uma morte natural. Mas a extradição de Chang para o território moçambicano também representaria a própria salvação da Frelimo, pois não há histórico de sucesso em casos de julgamentos de crimes de violação da legalidade orçamental ou de branqueamento de capitais em Moçambique envolvendo figuras do partido no poder no país.
Por isso, extraditar Manuel Chang para Moçambique representará uma possível vitória da Frelimo e, em contrapartida, o desaparecimento total dos dois órgãos de soberania (o legislativo e judiciário) moçambicano, cuja reputação já é praticamente inexistente.
Jornalista moçambicano residente em Portugal