“Gender Wars: the Union’s new battle line” é o título de capa do Spectator de 21 de Janeiro. Com a aprovação pelo parlamento de Edimburgo e o veto do governo inglês da nova lei de “autodeterminação da identidade e expressão de género”, que agiliza a mudança de identidade a pedido para maiores de 16 anos, a Guerra dos Géneros tornou-se a nova frente de batalha no Reino Unido. Uma frente traçada pela Chefe do Governo escocês, Nicola Sturgeon, que assim desafia a união do Reino – e assegura um eventual futuro posto de trabalho nas Nações Unidas como paladina de todos os arco-íris. Mas a batalha ateada por Sturgeon parece também estar a dividir unionistas, separatistas, trabalhistas, conservadores, feministas e esquerdas transformistas e os próprios escoceses, cuja população se opõe maioritariamente à lei (2/3 contra 1/3, segundo o Spectator).

A lei, diz Sturgeon, limita-se a “desburocratizar” o acesso a um Gender Recognition Certificate de todo o cidadão que pretenda autodeterminar a sua identidade. Acesso que passa a ser facultado também a adolescentes a partir dos 16 anos – sem qualquer parecer médico, diagnóstico de disforia de género ou o que seja e fora da tutela parental. Os únicos requisitos são agora a vontade de autodeterminação identitária e três meses de experiência – ou, mais propriamente, três meses de “transição social de expressão de género”, em que os candidatos ou candidatas deverão viver de acordo com a identidade pretendida.

Posto isto e a onda de protestos que gerou, o governo do Reino Unido acabou por exercer, pela primeira vez, o direito de veto; com Nicola Sturgeon a qualificar o acto do Primeiro-Ministro Rishi Sunak como um ultrajante ataque frontal ao Parlamento escocês.

Sunak terá estado tentado a ceder e terá sido até aconselhado a “não morder o isco” da escocesa, mas, entretanto, grupos de feministas, escoceses e ingleses, mobilizaram-se, argumentando que a lei permitiria que “predadores masculinos se declarassem mulheres para ganharem acesso a locais destinados a proteger as mulheres da violência masculina”; e duas mulheres do Gabinete Sunak, a Ministra da Administração Interna, Suella Braverman, e a Ministra da Igualdade, Kemi Badenoch, fizeram pressão para que o Primeiro-ministro vetasse a lei. Se a lei passasse, a Escócia e a Inglaterra teriam duas definições legais de sexo totalmente diferentes, o que impossibilitaria, dos dois lados da fronteira, a exclusão legal de “male-bodied trans-women” de espaços exclusivamente femininos, como celas prisionais, refúgios para vítimas de abuso sexual ou grupos de apoio a vítimas de violência doméstica.

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Era uma vez na América

Têm, de facto, ocorrido alguns incidentes com “male-bodied trans-women”, sobretudo na América, a terra de todas as oportunidades. Em Abril de 2022, duas mulheres, detidas numa prisão feminina em Clinton, New Jersey, ficaram grávidas depois de terem tido “consensual sex with a transgender inmate”.

A “transgender inmate” responsável pela proeza, de seu self-ID Demi Minor, estava condenada a 30 anos de cadeia por homicídio e estava em lista de espera para cirurgia correctiva do sexo que lhe fora “erradamente atribuído à nascença”. Entretanto, antes da correcção cirúrgica, a natureza, a irrelevante biologia, uma súbita crise de identidade ou uma opção não-binária pelo melhor de dois mundos tomaram o seu curso.

As mulheres-trans – male-bodied ou female-bodied – passaram a ser admitidas nos estabelecimentos prisionais de New Jersey a partir de 2021 por uma acção judicial da American Civil Liberties Union, na sequência de queixas de assédio e de abuso sexual por parte de uma mulher transgender a cumprir pena numa prisão de homens. Houve, entretanto, outras queixas de outras reclusas contra a presença em penitenciárias femininas de reclusas de identidade autodeterminada, mas não terão sido tão atentamente ouvidas.

Demi Minor, a responsável pelas gravidezes das suas companheiras de género (que não de sexo), foi depois transferida para a Garden State Youth Correctional Facility, uma prisão para jovens adultos. Mas ser ali a única mulher (segundo o género), também lhe trouxe problemas de agressão e maus tratos por parte dos seus companheiros de sexo biológico; tinha também já estado brevemente na New Jersey State Prison, onde fora tratada por “he” e por “him”, agressão verbal de que se queixara.

Até agora, esta e outras histórias aconteciam sobretudo na América, terra secularmente pródiga em promessas de felicidade mediante experimentalismos sociais conduzidos por líderes “iluminados”, terra rica em delirantes seitas e em puritanismos persecutórios, outrora religiosos e acientíficos, agora ideológicos e igualmente acientíficos, ou de cientificidade truncada; terra, enfim talhada para ser o paraíso dos Woke. O problema é que, em círculos e instituições influentes – nas academias, nos media, em instituições ligadas às Forças Armadas – estes delírios “genéricos” com as suas infinitas especificações e ramificações e com os seus imprevisíveis (e previsíveis) efeitos colaterais, querem agora oficializar-se.

Admirável Mundo Novo

Desde que entrou em vigor a “legislação avançada” contra o “determinismo biológico” – forçada por vanguardas esclarecidas perante a temerosa ou veneradora permissividade de alguns e o alheamento de quase todos – multiplicaram-se os embates com a realidade e as queixas. É o que vem acontecendo no Reino Unido, sobre a pressão de lobbies como o Stonewall Equality Limited, fundado em 1989. O Stonewall é o mais importante colectivo LGBT europeu e o nome inspira-se no famoso motim de 1969, em Greenwich Village, Nova Iorque, onde houve sérios confrontos entre a polícia nova-iorquina e homossexuais no Stonewall In; isto num tempo em que as várias orientações sexuais ainda não questionavam a realidade biológica.

No Reino Unido, a partir do Equality Act de 2010, que determina que as pessoas trans podem usar “gender separated spaces” de acordo com a sua identidade de escolha, as queixas têm vindo a acumular-se. O mesmo já acontecera numa série de Estados norte-americanos – quinze, ao todo – que, para obstruir a acção de “sexual predators”, optaram por seguir uma disposição da Carolina do Norte de 2016, aprovada pelos representantes da assembleia legislativa local, republicanos e democratas. Entraram então em vigor as chamadas “bathroom bills”, que obrigam as pessoas trans a frequentar as casas-de-banho públicas correspondentes ao seu sexo de nascença.

No mundo complexo a que a nova fé da ideologia de género abriu portas, entram também em choque várias formas de fundamentalismo e radicalidade. Surgem, como sempre surgem em todas as comunidades radicais, competições pela ortodoxia e pela pureza e a correspondente punição de heterodoxos, naquilo que em espaços extremos e não hierarquizados é sempre a luta pela hegemonia e pela definição da “verdade”. E depois, há os aproveitamentos políticos de tudo isto, como o de Nicola Sturgeon.

No Reino Unido o confronto entre as feministas “gender critical” e os partidários dos “gender-based rights” há muito que se faz ouvir. Em 2003, Sheila Jeffreys, em Unpacking Queer Politics, acusava as mulheres transsexuais de, na sua obsessão de se transformarem em homens, mais não fazerem do que capitular perante a misoginia. Jeffreys é uma velha feminista, uma espécie de Karl Marx do feminismo, com uma larga obra em que se esforça por fazer equivaler a “opressão exercida pelos homens sobre as mulheres” à opressão exercida pelos capitalistas sobre os operários, na narrativa marxista. Iniciou mesmo uma campanha crítica do transgendering, afirmando no seu livro Gender Hurts que as mulheres que procuravam tornar-se homens eram, no fundo, vítimas de um sistema profundamente sexista. Quanto aos homens que queriam ser mulheres, fá-lo-iam apenas por “razões de fetichismo sexual”.

No combate político concreto, Kemi Badenoch, a actual Ministra britânica para a Igualdade e uma das candidatas à liderança conservadora que ficou pelo caminho, além de ter pressionado o Primeiro-ministro Rishi Sunak para que vetasse a lei aprovada pelo parlamento de Edimburgo, tem vindo a opor-se às polémicas “gender-mental toilets” e a chamar a atenção para as obstruções à livre expressão em temas como raça, identidade, ou direitos LGBT. Badenoch, que é de origem nigeriana e foi uma das dirigentes tory que se demitiram depois do escândalo provocado pela nomeação por Boris Johnson de Christoffer Pincher (um dirigente implicado em casos de assédio homossexual), foi alvo de uma intensa campanha de demonização, em que era acusada de apoiar o grupo LGB Alliance, que, diziam os acusadores, conspirava com grupos conservadores críticos da existência de clubes LGBT nas escolas.

Percebe-se que a britânica Kemi Badenoch seja odiada pelos Woke, mas por mais que a escocesa Nicola Sturgeon tenha passado a ser adorada no mundo da autodeterminação identitária, o mesmo não tem acontecido no mundo aquém arco-íris, onde a incompreensão perante este seu insistente abraço ao novo despertar é cada vez maior, até dentro do seu próprio Partido Nacional Escocês.

Independentemente dos reais dramas humanos, das reais disforias de género e do real desnorte generalizado que todos estes enredos, casos e lutas também indiciam e revelam, a agilização do processo de “autodefinição de identidade de género”, extensível a maiores de 16 anos, ainda adolescentes, não deixa de ser uma promessa de felicidade fácil, com a proposta de um caminho que será tudo menos fácil: o caminho da autodeterminação ou Self-ID. Um caminho que sugere que o fim do descontentamento, da insatisfação, da inadaptação, da procura, pode estar à distância de um certificado ou de um punhado de irreversíveis tratamentos hormonais e agressivas cirurgias correctivas. Quanto ao escrutínio do trabalho no terreno das associações e das equipas de “transição identitária” ou de “reorientação de género”, e às elevadas taxas de suicídio associadas a estes processos, o silêncio ou silenciamento é quase absoluto.

Entretanto, por cá, também temos leis destas ou similares, leis contrabandeadas no Parlamento perante a temerosa ou veneradora permissividade de alguns e o alheamento de quase todos. Em nome do Progresso e sem grandes guerras ou batalhas.