Após as duas semanas do arranque do julgamento do caso BES/GES e a proximidade do dia dos defuntos, cabe-me trazer um pouco de memória, até – perdoe-se a redundância — em memória das 104 pessoas que já faleceram, no universo de 2000 que foram vítimas do maior crime económico-financeiro do país, e que ainda não foram ressarcidas em um único cêntimo.

Entre encenações maquiavélicas na chegada de Ricardo Salgado ao Campus da Justiça, novas perícias neurológicas para resgatar no DDT um Desafortunado Disto Tudo, erros esdrúxulos na avaliação da saúde financeira do Banco, risos – sim risos – em sede de julgamento por parte de arguidos e as suas defesas, bem com o renascer do sofrimento de todos os seus lesados e vítimas, mais faz pensar que nos estamos a aproximar do Dia das Bruxas, num verdadeiro “Hell-oween” que está para durar.

Na semana em que o primeiro-ministro de então, Pedro Passos Coelho, seria ouvido como testemunha, importa recordar algumas garantias bem na véspera do colapso do BES dadas pelas mais altas figuras do Estado em 2014 e que os clientes e investidores do banco confiaram – como não confiar?

O Governador do Banco de Portugal, aquele que deveria ser o nosso maior defensor (!) assegurava que o BES está sólido (…) mas ‘se tudo corresse mal’, os clientes do banco estariam salvaguardados. A Presidência da República, pela voz de Cavaco Silva, descansava os portugueses com as “folgas de capital do banco e que podiam confiar no BES”, e Pedro Passos Coelho não tinha “quaisquer dúvidas quanto à tranquilidade do sistema financeiro português” e que “os depositantes podem confiar no BES”. Estas declarações de confiança de quem os portugueses mais deveriam acreditar, conduziram à falácia que todos conhecemos, mas ainda pior: houve muitos que, após aquelas declarações, até investiram mais no BES, ou, como a maior parte das vítimas, naturalmente não sentiram necessidade de agir para retirar as poupanças depositadas ou em papel comercial/obrigações.

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Em plena semana em que também – ironicamente – é celebrado o “Pão por Deus” em Portugal, é ainda de relembrar que, um mês depois do colapso, Pedro Passos Coelho emendava as suas erradas declarações de confiança, garantindo avançar com uma subscrição pública no sentido de apoiar os lesados do papel comercial do BES, um “peditório” que, claro, também nunca aconteceu…(só a uma pequena parte das vítimas foi proposto um acordo com alguma recuperação)

Estas “efemérides” marcam dois dos problemas estruturais no país: Portugal não está preparado para defender os depositantes de boa fé, ou os investidores não qualificados que tenham perdas financeiras por responsabilidade dos intermediários financeiros, e falta (ou pelo menos faltou) a Palavra de Honra dos agentes e decisores no circuito económico-financeiro, com um claro impacto social e nas contas do país. Para além do comportamento negligente, incompetente e de uma inação gritante do Banco de Portugal, que é (ou deveria ser) o regulador e protetor financeiro do Estado, ficou registada a leviandade das palavras e contra-palavras da presidência da república e governo de então.

O desfecho deste julgamento, que promete ser longo e complexo, será decisivo para Portugal no combate à corrupção, fraude fiscal, branqueamento de capitais e outro rol de crimes e práticas ilícitas que marcam este caso.  Após 10 anos, não falamos só das vítimas. Falamos de Portugal e os portugueses não vão entender se tudo isto escapar incólume, numa finta à Justiça. Se a sua mão não for firme, abrimos portas (e cofres) para que a situação se repita.

Portugal tem aqui a oportunidade de ouro (literalmente), de demonstrar à Europa e ao mundo que  justiça  universal em prol do Bem Comum (de que falava Aristóteles) também cá é possível, com condenações e reparações exemplares.

No caso Madoff (entre muitos possíveis exemplos), o MP americano promoveu junto do tribunal que os bens arrestados aos arguidos fossem em primeiro lugar para reembolsar as vítimas, ainda antes da conclusão do julgamento e respetiva sentença. Dado que não foi isso que aconteceu em Portugal, no limite e legitimamente, exigimos que os bens arrestados de 1.8 mil milhões de euros sirvam para reembolsar as vítimas, 1994 pessoas que depositaram a sua confiança abnegada nos seus pontos de contacto e gestores de carteira, muitos deles sem capacidade – académica e técnica – de fazer uma escolha informada.

Apenas confiaram, pois confiam no estado de direito no país, nos supervisores – confiam que somos um país europeu. Precisamos de Justiça, não de peditórios e de “pão por Deus”. Muito menos num “saco azul”.