Ainda que até o crème de la crème das nossas (por vezes indestrinçáveis) indústrias de intelligentsia e entertainment nos assegure que esta Terceira República está longe de nos oferecer o “país das maravilhas” que a revolução nos prometeu, a onda comemorativa do 50º aniversário de Abril já está em marcha. E não é para menos: dos regimes precedentes, só a monarquia liberal atingiu semelhante longevidade.

Nascida da revolução de 1820 e da Constituição de 1822, só com a vitória de D. Pedro na guerra civil, em 1834, vencida a resistência tradicionalista e popular, pôde a monarquia liberal estabelecer-se de vez. E em 1884, quando estava prestes a fazer meio século, já estava em crise. Os intelectuais e pensadores do tempo, como Herculano (que morrera em 1877) ou Oliveira Martins, tinham feito o processo crítico da monarquia liberal, do liberalismo convulso ao rotativismo. Ora diziam mal das oligarquias dominantes, com uma nostalgia subtil de outros tempos e de outras dinastias (como o medievalismo democrático do exilado de Vale de Lobos), ora estendiam uma velada passadeira de encorajamento à revolução popular republicana. O próprio Eça de Queirós, o maior novelista português da época e talvez de sempre, deixou este processo crítico imortalizado nas figuras secundárias dos seus romances – o Conselheiro Acácio, o conde de Gouvarinho, Dâmaso Salcedo, Palma Cavalão. Houve, entretanto, um episódio que os marcou a todos e os trouxe do encanto por uma Europa avançada – mais afrancesado nuns, mais anglicizado noutros, mais germanófilo nos mais filosofantes Antero e Oliveira Martins – para os encantos patrióticos de um Portugal acossado. O Ultimato e a humilhação daí recorrente tiveram uma influência decisiva na fase final das obras desta elite de “Vencidos da Vida”.

Assim, o final do século XIX português é marcado pelo pessimismo do magnífico Portugal Contemporâneo de Oliveira Martins. Este pessimismo ou “vencidismo” da Geração de Setenta vinha de um núcleo duro pensante, crítico, conhecedor das ideias da Europa e do mundo, e da realidade portuguesa. Gente que marcou o seu tempo e o transcendeu.

O triunfo da República

Os republicanos foram buscar à humilhação do Ultimato força e popularidade, culpando a dinastia – os Bragança – pela aceitação do Diktaat de Lord Salisbury. Não era bem assim, mas passava a ser.

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Já dez anos antes, em 1880, os mesmos republicanos, pela mão de Teófilo Braga, se tinham apropriado do terceiro centenário da morte de Camões, arrasando a monarquia e a dinastia a pretexto das celebrações da morte do poeta, a 10 de Junho.

Nesse tempo, esse Portugal em crise via as vitoriosas campanhas dos “Africanos” em Moçambique, evocadas em cima do acontecimento, em 1898, por António Enes, em A Guerra de África em 1895 – Memórias. Era como que uma redenção da pátria no império ameaçado, por conta do que na Metrópole se passava.

A Primeira República nasceu deste clima negativo para a dinastia e do oportuno assassinato do Rei D. Carlos que, com João Franco, abrira um caminho de possível salvação do regime num modelo autoritário e popular. Chegados ao poder, os democráticos de Afonso Costa, muito na linha dos anticlericais franceses, perseguiram a Igreja e os monárquicos. E nem os republicanos conservadores e moderados escaparam.

O regime impregnou-se daquele palavroso fanatismo dos defensores das “boas causas” – das grandes causas da Humanidade, da Razão, da Ciência e do Progresso –, e daquela sanha destrutiva contra todos os que ou não perfilhavam ou obstaculizavam a imposição de tão nobres princípios. Deste modo, além de cultivarem um belicismo cruzadista, levando o Corpo Expedicionário Português para a Flandres, persistiram no monopólio do poder, trabalhando as leis eleitorais e corrigindo pela violência das milícias partidárias o que não lhes saía bem nas urnas.

Mataram Sidónio Pais, como tinham assassinado D. Carlos, não hesitando no recurso a “formas superiores de luta” sempre que estava em jogo o seu poder. Como os inquisidores queimavam os corpos para salvar as almas dos perdidos, assim também as esquerdas iluminadas, convencidas de que estavam a salvar o mundo, destruíam alegremente quem se lhes opunha.  A Primeira República só durou uns imberbes dezasseis anos: não há-de Abril comemorar os seus maduros cinquenta anos?

A Ditadura Militar e o Estado Novo

E veio o 28 de Maio de 1926, pela mão de capitães e tenentes medalhados da Flandres, com o general Gomes da Costa arrastado por um punhado de civis a caucionar o movimento de Braga. Movimento que, de Braga, e em progressiva marcha de adesão através das províncias, chegou a Lisboa sem resistência que se visse, onde entrou em princípios de Junho, entre um grande consenso nacional, que ia dos monárquicos integralistas aos activistas sindicais. Todos contra os “democráticos” de Afonso Costa e António Maria da Silva, o persistente e resistente centrão esquerdizado da altura.

Assim, por eles e com eles, a República caiu ainda antes de celebrar o 16º aniversário.

E foi a Ditadura Militar, de 1926 a 1933.  Só durou sete anos: não há-de Abril festejar os seus democráticos cinquenta anos?

Depois, por pensamento e determinação de António de Oliveira Salazar, a Constituição de 1933 inaugurou o Estado Novo. Foi um regime ao modo do tempo, quando a democracia liberal estava em crise na Europa e em Portugal dera más provas – até porque não fora muito democrática (votava 7% da população) e, muito menos, liberal. Daí veio um regime nacional-conservador no conteúdo e autoritário na forma.

O regime, com a ordem nas ruas assegurada, com o problema das Finanças resolvido por Salazar, esteve activo na política internacional da época: ajudou Franco a conter a Frente Popular e a vencer a Guerra Civil de Espanha e teve uma política de neutralidade colaborante com os Aliados, a partir de 1943. Sobreviveu, por isso, à vaga “antifascista” de 1945 (americanos e ingleses viram que, por cá, a Esquerda era intelectual e existencialmente dependente dos comunistas). Também por isso, Portugal foi fundador da NATO em 1949 e participante de pleno direito na Europa da EFTA e na “comunidade internacional” até ao início da guerra de África em 1961.

Internamente, a partir dos anos cinquenta, houve um importante programa de industrialização e obras públicas e grandes progressos no combate ao analfabetismo que, na Primeira República, atingia 75% da população.

Mas o regime perdera já a batalha ideológica, como era expectável no clima político-cultural da Europa Ocidental. À medida que se apagavam nas gerações as memórias da “balburdia sanguinolenta” da Primeira República, chegavam da Europa e da América, apesar da Censura, os livros, as revistas, os jornais, os filmes que mudavam as cabeças. As eleições presidenciais de 1958 mostraram isso mesmo e a mudança nos meios católicos, a partir de João XXIII, foi também decisiva nas novas gerações.

Curiosamente, a Guerra de África, em 1961, não só recuperou apoio nacional e popular para o regime, como lhe valeu alguma lealdade nas novas gerações, que o associaram ao ideal de um Portugal ultramarino pluricontinental e plurirracial.

Só que a guerra que ajudara a prolongar o regime seria também uma das causas do seu fim. Exótico numa Europa democrática e liberal, o regime do Estado Novo fora feito à medida, nas ideias e no modo de gerir o poder, por Salazar e para Salazar. Era difícil sobreviver-lhe. E não sobreviveu. Durara 41 anos: não há-de Abril festejar os seus vitoriosos 50 anos?

O início dos festejos

Os que agora comemoram, alvoroçados, o golpe militar de Abril, festejam, justamente, o triunfo da Democracia… O facto de, até ao 25 de Novembro, os presos políticos do COPCON ultrapassarem em número os presos políticos do Estado Novo em 74, enquanto comunistas e maoistas tomavam conta da rua, são minudências que não contam para o saldo democrático; as longas guerras civis em Angola e Moçambique a que a Descolonização daria origem são irrelevantes pecados de juventude;  já o estado actual dos outros dois Dês de Abril, Democracia e Desenvolvimento, são os episódios de pré-senilidade de quem, há tantos anos, carrega aos ombros tão amplas liberdades e conquistas.  Com tudo isto, não há-de Abril festejar os seus exemplares cinquenta anos?

A antecipada ida às urnas promete dar início aos festejos.