O ano lectivo mal começou e recebemos a triste notícia de um jovem de 12 anos que esfaqueou 6 colegas. A pergunta mais repetida nos comentários à notícia é “o que é que se passa com o nosso país?”. É evidente que se passa algo, pois o número de crimes de violência entre jovens aumentou. Na busca por explicações, culpam-se as séries e os videojogos violentos e, mais recentemente, a influência do Estados Unidos da América, que invadem as redes sociais com histórias de atentados violentos em escolas. Todas estas coisas são, de facto, potenciadores nocivos, mas estamos a perder tempo a indagar sobre causas sobre as quais temos pouco controlo, quando há outras nas quais tomamos parte.

Neste caso, o agressor começava o sétimo ano. Posso testemunhar como professora de 3.º ciclo que se trata de uma idade em que o ser humano tem o potencial de fazer as coisas mais nobres e as mais monstruosas. O dom e a maldição de ser adolescente são os de sentir tudo com uma enorme intensidade e os de absolutizar tudo o que se sente. A dor do adolescente é, não só, muito intensa, como vai, para ele, durar para sempre.

Em regra geral, há dois tipos de adolescente capazes de atentar contra outros: o que tem uma doença mental ou aquele que está a sofrer imensamente. Uma dor tão grande que parece apenas justo que outros também a sintam, especialmente quando esses outros parecem ignorá-la por completo. Muitas vezes os dois tipos sobrepõem-se.

Quando uma tragédia destas acontece, os canais de televisão vão de microfone em punho perguntar a qualquer pessoa que mal conheça o agressor se já tinha reparado nalgum traço criminoso. Geralmente a resposta é “parecia-me uma pessoa normal, dizia boa tarde”. Todos ficam surpreendidos pela aparente falta de indícios. Há indícios, mas procura-se no sítio errado. A pergunta a ser feita é: como é que, entre família, amigos, colegas e professores, ninguém reparou na dimensão do sofrimento daquela pessoa?

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A resposta é simples: falta de comunidade e relações que ultrapassem os cumprimentos mínimos. Neste momento, as escolas públicas não são comunidades. Para muitos, a escola é uma experiência solitária, sobrevive-se a cada dia sozinho na esperança de que acabe.

Olhemos para o caso dos alunos institucionalizados, alguns retirados aos pais contra a sua vontade, outros órfãos. Há, em vigor, um programa através do qual o Estado cede professores a instituições para darem apoio escolar a estes jovens; mas a realidade é que as notas tendencialmente baixas destes alunos não se devem à falta de pais que acompanhem o seu estudo, mas sim à ausência de pais que lhes dêem tempo e atenção.

Quando vêm da escola não encontram uma família que os receba com afecto, e quando voltam, de manhã, não encontram ninguém que compense essa ausência de afecto. Os colegas são demasiado imaturos para compreenderem a dor que sentem, e os professores, infelizmente, estão demasiado ocupados com outros assuntos. Por vezes a situação familiar irregular destes alunos, que rapidamente se torna conhecida, faz com que os colegas os rejeitem, tornando o seu sofrimento insuportável.

Mesmo entre os que têm famílias, há mil outras situações de alunos desintegrados que vagueiam pela escola com poucos ou nenhum amigo. E pior do que ser rejeitado, só ser rejeitado e agredido — o bullying. Não se pode negar que os casos de bullying prolongado evoluem sempre no sentido de uma destruição. Pode ser uma implosão, como a depressão, a auto-lesão e no pior caso, o suicídio; ou uma explosão, como uma agressão a outros que não olha a meios ou consequências.

Se não há consciência desta destruição é porque a sociedade deixou de noticiar os casos em que a vítima é só uma.

A única maneira de acabarmos com a violência nas escolas é investindo na construção de uma Comunidade Escolar. Não venham dizer que não há tempo ou horário! O tempo é todo, porque a comunidade constrói-se em cada disciplina, a cada interação. Mas, claro, há disciplinas com maior oportunidade para criar relações, como Educação Física ou Cidadania e Desenvolvimento.

Nos últimos anos, o debate sobre a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento tem-se focado, com demasiado ênfase, em questões que não correspondem à vivência da Escola Pública. Houve um grande alarido pelas questões relacionadas com identidade de género e sexualidade, como se apenas disso se falasse nas aulas. Não digo que os temas não sejam importantes, mas quem tiver paciência para ler em ziguezague as 80 páginas do Referencial para ensino do Desenvolvimento e as 16 do Referencial para Cidadania , verá que não existe nenhuma diretriz específica sobre estes assuntos. Do mesmo modo, o livro da Porto Editora para a disciplina dedica apenas 2 páginas a estes assuntos. Estamos a despender demasiado tempo a debater problemas sem expressão objectiva nas escolas, enquanto outros se avolumam longe do foco da comunidade e da comunicação.

Não podemos esquecer que Cidadania deriva de Cidade e que esta é, por definição, uma aglomeração humana, uma comunidade. A disciplina de Cidadania tinha a ambição de ensinar os alunos a viver em comunidade, mas ficou-se pela ambição.

Nestes referenciais para a disciplina, encontramos capítulos como “entender o conceito de inclusão social”. Num meio onde todos lutam por pertencer, os alunos sabem perfeitamente o que é a inclusão social, porque conhecem bem o que é a exclusão, não precisam de um manual que lhes diga. Segue-se um capítulo sobre “o esforço por promover a Cidadania Global” , o que também parece absurdo, quando não há um esforço anterior por promover a Cidadania Local.

Há ainda, nestes documentos, um grande capítulo sobre “construção da paz “, com tópicos tão conceptuais e inúteis como “entender que a ausência de guerra não é sinónimo de paz” ou “valorizar benefícios da paz” e, por fim, um capítulo sobre “participar em processos de resolução pacífica de conflitos, com base no diálogo, na negociação e no compromisso”, mas não diz como! Os jovens não sabem como e os adultos também não estão certos!

É urgente que a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento deixe os conceitos abstratos e mergulhe na realidade escolar.

Tristemente, neste verão dois homicídios foram cometidos por jovens de 15 e 16 anos. É relevante dizer que num dos casos a Polícia Judiciária disse que o motivo do esfaqueamento era fútil. Morreu um jovem de 18 anos por uma futilidade e esta é a prova de que há dificuldades em resolver desentendimentos no nível mais superficial.

Em Portugal, a escolaridade é obrigatória até aos 17 anos. Estes jovens que mataram tiveram, muito provavelmente, presentes nas aulas de Cidadania e Desenvolvimento, nas quais ouviram falar sobre os benefícios da paz. De nada lhes serviu.

É urgente um programa para gerir conflitos entre alunos. Os jovens têm poucos recursos para gerir conflitos, têm sentimentos fortes e não sabem o que fazer com eles. O papel dos pais, professores, auxiliares e psicólogos é capacitar, sem entrar num domínio que é só deles. Não podem ser os adultos a resolver os conflitos; têm de ser os alunos a fazê-lo, se queremos uma sociedade feita de indivíduos emocionalmente maduros.

Enquanto continuarmos a tratar os alunos como agentes passivos, que devem apenas absorver conhecimento, não haverá melhorias. A agressividade só vai parar quando levarmos a sério o sofrimento das crianças e dos adolescentes e os ensinarmos a lidar com esse sofrimento. Precisaremos de um apoio psicológico nas escolas que se estenda para lá dos problemas cognitivos, porque os alunos são mais do que a sua capacidade para aprender. Por fim, parece-me que o primeiro passo no sentido desta paz é a atenção. Estarmos atentos aos alunos e interessarmo-nos pelas suas realidades, por mais complexas que sejam.