Na minha juventude fui habituado pela família a considerar a mentira com um dos piores defeitos dos meninos mal-educados, a quem se devia colocar pimenta na língua. Depois, ao longo da vida, convivi sempre mal com a mentira, tanto na empresa e nos negócios como na actividade política. Hoje, verifico com tristeza que a mentira se institucionalizou e faz parte inerente da actividade política nos diferentes países e também em Portugal.

Um exemplo importante:  recentemente, o vice-presidente da empresa pública IP, Carlos Fernandes, afirmou publicamente que “a Espanha começou a fazer a migração para bitola europeia, mas já não o está a fazer e não tem planos para a mudança nas próximas décadas, pelo que, se Portugal adoptasse a bitola europeia, os comboios chegariam à fronteira e paravam.” Esta afirmação é obviamente mentirosa e revela a total incapacidade de defender o interesse nacional pelas seguintes razões: (1) recentemente o governo espanhol decidiu investir mais 17 mil milhões de euros na transição para a bitola europeia, nomeadamente co corredor do Mediterrâneo onde se situa uma parte relevante da economia espanhola; (2) Carlos Fernandes não considera as decisões da União Europeia de terminar o apoio à mudança de bitola das linhas core até 2030, como a decisão de Bruxelas ao dar dois anos a Portugal para justificar o não cumprimento das directivas europeias no caso da bitola; (3) é igualmente mentirosa a afirmação de que as novas linhas em bitola ibérica permitem a ligação à restante rede nacional, porque não cabe na cabeça de ninguém comprar comboios que andam a 300 Km por hora para percorrerem a 60 ou 100 Km as linhas portuguesas do século XIX; (4) Carlos Fernandes e o governo da AD não consideram a hipótese de negociar com a Espanha e com Bruxelas o cumprimento das directivas europeias, aliás já acordadas na Figueira da Foz durante a governação de Durão Barroso; (5) as sucessivas mentiras ao longo dos anos de Carlos Fernandes em nome da IP, parecem ser aceites pelo novo ministro Miguel Pinto Luz, o que torna o governo da AD corresponsável com os anteriores governos do PS dos prejuízos financeiros resultantes da perda dos apoios europeus que podem chegar a 70% dos custos e pelas limitações causados ao comércio externo de Portugal, por ausência de ligação ferroviária das mercadorias portuguesas à Europa.

Ao longo dos últimos anos a empresa IP tem mentido sistematicamente sobre as intenções da Espanha e desvalorizado politicamente a capacidade de Portugal defender os interesses ferroviários e económicos portugueses, nomeadamente junto de Bruxelas. Igualmente grave, a empresa evita por todas as formas explicar as razões e os interesses que possam estar na decisão de manter a economia portuguesa refém da Espanha e sem acesso da ferrovia nacional à Europa. Para isso, quando organizam debates sobre o tema, evitam sistematicamente a participação de quaisquer pessoas com opiniões contrárias. Que o novo governo da AD e o ministro Miguel Pinto Luz se aliem ao PS na defesa da bitola ibérica e aceite os prejuízos resultantes para a economia portuguesa, demonstra a dimensão dos interesses envolvidos e não explicados aos portugueses, nomeadamente aos empresários e associações empresariais como a CIP e a AFIA.

A mentira é um instrumento do populismo e das políticas populistas e de interesses pouco claros. É assim em Portugal, na Europa e nos Estados Unidos e a melhor síntese que encontro para o afirmar chega-nos de um dos melhores pensadores portugueses, Miguel Monjardino: “O populismo não é uma ideologia, é uma estratégia de conquista e manutenção do poder. Fundamentalmente constrói-se uma realidade alternativa nas redes sociais. Os factos e a verdade são secundários ou irrelevantes. O importante é encontrar um inimigo abstrato e difuso, como as “elites” ou a “imprensa”.

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Em 2020 Miguel Monjardino fez no Expresso um retrato de Donald Trump que representa o expoente máximo do populismo e do uso da mentira como instrumento político e que é extremamente actual neste momento, nomeadamente em Portugal, para compreender o uso da mentira como política de Estado. Diz o texto: “Vimos um político com falhas graves de carácter. A primeira é a sua propensão para a mentira. Trump não é, certamente, o primeiro político a mentir ou a ser pouco generosos com a verdade. Todavia, é difícil recordar um presidente dos EUA que tenha mentido de forma sistemática ou que tenha inventado com convicção tantos factos. A segunda tem sido a sua acção deliberada no sentido de corromper as instituições e as regras informais da república democrática norte-americana. Isso diminui a confiança do eleitorado no seu sistema político.”

Miguel Monjardino acrescenta mais nesse extraordinário texto sobre a mentira e o populismo: “Finalmente temos a preguiça, a ignorância e a indisciplina no processo de decisão e escolha. Trump confia muito mais nos seus instintos do que nos factos ou em análises. O caos e a incerteza na Sala Oval têm sido uma forma de manter o poder. O seu verdadeiro slogan não é a “América First” mas sim “Trump Always First”. Tal tem tido consequências muito negativas para as políticas públicas e para a reputação dos EUA. A gestão da pandemia é o melhor exemplo”.

O exemplo norte-americano pode ser extensivo a Portugal. Ao longo dos últimos oito anos assistimos ao uso sistemático da mentira e da meia-verdade pelos governos do PS na tentativa de justificar o imobilismo, a ausência de reformas e a falta de ideias sobre o futuro de Portugal, sempre com o objectivo principal da manutenção do poder. Confesso que não esperava que o novo governo da AD, em que votei, lhes pudesse seguir as pisadas e a ferrovia não é caso único.