Quando o dr. Fernando Medina presidiu à Câmara de Lisboa rematou o mandato de má memória com a Operação de Entrecampos, um tumor de construção agressiva no centro da cidade onde ele e o sábio dele licenciaram 70% de área para comércio e serviços e apenas 30% para habitação. E foi exibir-se para os jornais como autor da “maior operação urbanística desde a Expo 98”. Durou pouco. O Plano Geral de Drenagem de Lisboa, apresentado esta semana, é talvez a maior obra pública municipal de sempre. Impõe-se ao erro de Salgado e Medina por uma desproporção peremptória. Com a diferença de que esta obra, decidida por Carlos Moedas, é necessária e está certa.
Há décadas que a cidade não suporta a rede existente. Não precisamos de invocar “alterações climáticas” nem outras previsões catastróficas, basta as chuvas normais, sobretudo na mudança de estação. Carlos Moedas merece logo à partida o nosso respeito pela coragem política de pôr em prática um projecto e uma obra que é cara, é complicada, é demorada e é invisível. Uma obra cuja única parte visível – os estaleiros – é altamente perturbadora da vida na cidade. Não tenhamos ilusões.
A estrutura fundamental do Plano de Drenagem consiste na construção de dois colectores subterrâneos gigantescos, de diâmetro muito semelhante ao dos túneis do Metro (cerca de cinco metros e meio). Um deles, com cinco quilómetros, vai ligar Monsanto a Santa Apolónia; o outro, com um quilómetro, vai de Chelas ao Beato. É, repito, a estrutura fundamental e a parte mais pesada da obra, mas o Plano não se fica por aqui. Tem outras maravilhas e dificuldades, e algumas delas irei, a pouco e pouco, mencionando mais à frente.
Convém que a cidade esteja muito envolvida, que os jornais andem em cima disto, que as pessoas saibam o que vai acontecer. E conheçam antecipadamente a localização dos estaleiros para conseguirem planear as alterações que esta obra vai causar nas vidas delas. Prevê-se, por exemplo, um enorme estaleiro na Avenida da Liberdade. Deve-se ter cuidado com as árvores adultas, algumas muito velhas, que provavelmente não serão transplantáveis. Atenção ao acréscimo de custos que isto pode significar. Deus queira que a Câmara de Lisboa tenha apontado aos 250 milhões de euros (foi esse o valor indicado) e não precise de os subir. Com toda a franqueza, tenho dúvidas. Receio que mesmo este valor esteja ainda abaixo do necessário.
Por muitas razões, algumas até já apontadas pelos próprios projectistas. A geologia, a geotecnia, a hidrologia, a arqueologia. A arqueologia provoca enormes atrasos nas obras, e a do Plano de Drenagem, que entretanto começou, também já deu de frente com a Muralha Fernandina e encontrou a Porta da Ribeira, junto ao Terreiro do Paço. Estas coisas provocam atrasos e significam acréscimo de custos. A própria situação internacional não está para brincadeiras, com a subida dos preços, e dos transportes, e dos stocks, e as trapalhadas que levam um processo de obras como este a um custo final exorbitante.
Além disto, Lisboa é uma cidade particularmente complexa, com uma rede de esgotos velha e obsoleta, com colectores sub-dimensionados para a maneira como a cidade entretanto cresceu, materiais ultrapassados – boa parte em grés – e sectores completamente partidos a verter para onde a água e os dejectos se conseguem esgueirar. Há problemas pela própria natureza do subsolo, várias ribeiras em cima das quais a cidade ao longo dos anos se instalou, e portanto já se impermeabilizou. Essas linhas de água têm de ter uma saída alternativa. E há ainda grandes áreas conquistadas ao rio Tejo.
Um dos pontos deste Plano de Drenagem é o reforço e reabilitação da rede de saneamento existente, para esgotos domésticos e águas pluviais. Aqui também lamento pôr um certo cepticismo aos valores que estão previstos. Imagino, pela minha experiência de ligação de edifícios à rede pública, que o que por aí vai é muito complicado e vai ser pior do que se prevê. Acostumada a muitas obras de reabilitação, acima do subsolo, sei que mesmo com todos os cuidados, sondagens, e levantamentos prévios, se encontram inúmeros problemas imponderáveis. Debaixo de terra vão encontrar-se muitos mais. Dito isto, esperemos todos que sim, que as coisas corram como estão planeadas.
Um dos aspectos preocupantes da ideia do Plano de Drenagem, durante os executivos anteriores, e sobretudo o último, com Fernando Medina, era a sub-orçamentação. Viu-se logo, pelos valores que iam sendo adiantados, que esta obra não estava a ser levada a sério. Percebia-se que não havia uma avaliação sensata: cento e tal milhões de euros não era definitivamente um valor de quem conhece estas coisas com a profundidade necessária e sabe do que está a falar.
Esta obra que é preciso construir para Lisboa é cara e complicada. Mas, em primeiro lugar, ela é absolutamente necessária; e, em segundo lugar, tem de ser encarada no seu custo e na sua complexidade. O contrário do que fizeram os governos anteriores, de Medina e do Partido Socialista, com a sub-orçamentação. Uma sub-orçamentação deste nível é demagogia e é uma maneira de enganar as pessoas.
Esta obra é um modelo que podemos extrapolar para um caso geral de políticas públicas. É um exemplo de muitas coisas que se pedem ao Estado sem ter a noção dos custos e da complexidade. E também é, simetricamente, um exemplo daquilo que os responsáveis políticos muitas vezes prometem sem reconhecer os custos nem a complexidade.