O Chega disse da mesquita do Martim Moniz (anunciada por Fernando Medina) que era um “perigo para a cidade” trazer para ali “uma questão com o Islão radical”. Um deputado da extrema-esquerda quis denunciar as declarações do Chega a uma comissão, para que fosse punido, porque as considerou “racistas” e avisou que isso era “crime de ódio”; pediu à presidente da Assembleia Municipal que enviasse o excerto da acta à tal comissão – porque não as enviaria ele próprio?, não explicou. O deputado do Chega deu o passo seguinte: sentindo-se insultado, chamou a PSP. Entraram dois agentes armados na sala do plenário, e a reunião seguiu imperturbada durante uns minutos. Depois saíram calmamente, os agentes e o deputado do Chega. À presidência da Mesa nada disto pareceu grave, e foi preciso ser interpelada por três deputados até perceber que tinha de interromper os trabalhos. Estava em risco o regular funcionamento da Assembleia. No final do desacato, e da discussão – de resto, interessante – que se lhe seguiu, a senhora presidente pediu desculpa à cidade e distribuiu a responsabilidade por todos. Houve quem a devolvesse, agradecendo penhoradamente. Nem todos aceitaram aliviar a responsabilidade do Chega, que a chamou e conduziu à sala; da PSP, que tem obrigação de conhecer os protocolos e procedimentos, e sabe que não pode entrar numa assembleia de deputados eleitos; e da própria Mesa, que devia ter interrompido os trabalhos assim que viu dois polícias descer, mão no coldre e papel na outra mão, placidamente por entre as cadeiras.

Este é o quotidiano da Assembleia Municipal de Lisboa. É preciso conhecê-lo, porque Lisboa é importante, e o assunto é importante, e o que sucede em Lisboa acaba por se repetir no governo da República. Há uma degradação visível da cultura política, que se tem vindo a instalar e começa a tornar-se banal. Ignoram-se as regras e procedimentos, ignoram-se as formalidades, e também se ignoram os conceitos básicos em que assenta a democracia, como a liberdade de expressão.

O Chega foi efectivamente insultado. E ainda bem. O deputado que o insultou disse o que pensa e, acima de tudo, disse o que o eleitor da extrema-esquerda espera dele. A extrema-esquerda, como qualquer deputado eleito, deve poder chamar racistas às declarações que entender, com ou sem razão. Nem o próprio Chega compreendeu que o primeiro pecado político não foi essa acusação de racismo, mas sim a denúncia que a extrema-esquerda quis levar à Comissão. Um erro grave da extrema-esquerda. Os deputados têm de poder falar livremente, sem correr riscos de ser denunciados a uma comissão qualquer e punidos por delito de opinião. Para isso existe a imunidade parlamentar, que dá aos deputados uma liberdade de expressão mais larga do que é permitido fora das assembleias, acima da lei geral. A liberdade de expressão tem de ser completa, incondicional, e geral para todos os deputados, sobretudo dentro de uma assembleia. A imunidade parlamentar nasceu com o propósito de impedir perseguições políticas – ou pessoais – com base em delitos de opinião; existe na Assembleia da República e devia ser estendida a todas as assembleias, municipais e locais. Caso contrário, o delito é determinado pela maioria, e arbitrado por aqueles que tomam o poder. Também por isso se derrotou um regime que impedia a discórdia pública. E, em lugar dele, construiu-se um Portugal democrático onde opiniões diferentes, ou mesmo incompatíveis, devem poder conviver no sossego e na ordem. Como é evidente, o Chega tem de aceitar a mesma liberdade de expressão para ouvir as críticas, com as palavras mais brutais, às ideias – chocantes ou doces – que o Chega vier defender. Tão bravo a apresentar-se como o único herói “contra o sistema” e não consegue encaixar um insulto sem fazer beicinho e chamar a polícia? Para tão ambiciosas proezas é bom que o Chega comece a apresentar deputados mais adultos.

Bem vistas as coisas, depois do desfile de erros iniciais, e descontada a distribuição desinteressada de responsabilidades, o que aconteceu na Assembleia Municipal de Lisboa não foi “uma vergonha” nem uma perda de tempo. Depois da entrada da polícia, e até ao canhestro pedido de desculpas por parte da Mesa, houve cerca de uma hora de intervenções políticas, saídas de todas as bancadas, algumas por mais de uma vez. E também não se esteve a discutir o racismo. O que se passou ali foi um ensaio aos limites da democracia. Em que, de resto, a maioria dos deputados até esteve bem; pareceu-me que, a pouco e pouco, perceberam onde começava e onde acabava o regular funcionamento das instituições. Uma tarde de política pura, que ensinou mais do que horas e horas de muitas sessões. A política, para ser boa, tem um lado duro e áspero; ela contêm as tensões e os conflitos que existem na sociedade, e por isso é importante. A política não é um poema adolescente nem uma recepção no palácio de Queluz.

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