Em bom tempo a Ordem dos Engenheiros organizou na sua sede em Lisboa um debate sobre o Plano Ferroviário Nacional, (PFN) onde finalmente puderam participar os críticos, em quase igualdade com os defensores do Governo, porque até aqui no chamado debate público os participantes têm sido escolhidos cuidadosamente de forma que o PFN não possa ser posto em causa. Assim, ao início da tarde, puderem expor as suas razões, o Engenheiro Mineiro Aires e o vice-presidente da empresa pública IP Carlos Fernandes que tem o encargo da organização da chamada modernização da ferrovia portuguesa, que justificou o plano. De seguida fizeram as suas intervenções três engenheiros que se têm distinguido pela sua oposição ao PNF e foram subscritores do Manifesto da Ilha Ferroviária. Como seria de esperar, durante algumas horas foram expostas muitas das falácias do Governo, tanto do ponto de vista estratégico, como técnico e económico. Por exemplo:

1 Foi posta em causa a permanente afirmação do Governo de que a preferência pela bitola ibérica se deve a que o governo espanhol nada faz para chegar com a bitola UIC (europeia) à nossa fronteira e que se Portugal mudasse a bitola não teria continuidade do lado espanhol. Ora como demonstrou o ex-ministro Luís Mira Amaral, existe um acordo com a Espanha assinado na Figueira da Foz entre os dois governos para a adopção conjunta da bitola europeia e que quando introduziu a rede de gás em Portugal negociou com os espanhóis em Bruxelas e não em Madrid e se o Governo já chegou a acordo com a Espanha para a construção de um pipeline destinado ao transporte de hidrogénio que ainda não existe em Portugal, maior razão teria de chegar a acordo para o transporte das nossas mercadorias para a Europa, que são reais e mais de 70% das nossas exportações.  Mira Amaral fez ainda uma detalhada exposição do desastre que será para a economia portuguesa a perda da oportunidade de ligar a ferrovia portuguesa ao centro da Europa e que apesar da Espanha ser um grande cliente, para a economia portuguesa crescer teremos de alargar as nossas exportações a outros países europeus. Também recordou o trabalho feito na CIP, que demonstrou que a via marítima embora muito importante não é competitiva no comércio com a Europa e a consequente preferência dos sectores exportadores pela ferrovia.

2 O engenheiro Fernando Santos e Silva, por sua vez, chamou a atenção com dados que foi a União Europeia que criou a política de interoperabilidade de toda a rede ferroviária europeia com grandes apoios a fundo perdido para a realização dos investimentos necessários, que a Espanha aproveitou para desenvolver a mais moderna rede ferroviária da Europa. Que o mesmo está a ser feito pelos restantes países europeus do Leste, deixando Portugal como uma ilha ferroviária, perdendo com isso milhares de milhões de fundos europeus. Demonstrou ainda que as exportações para o resto da Europa foram em 2022 de 25767 milhões de euros e para Espanha 16822 milhões, pelo que a ligação ao centro da Europa é fundamental e nada justifica a afirmação simplista do Governo que a bitola ibérica permite as exportações para Espanha. Finalmente, demonstrou com dados que a chamada modernização da linha da Beira Alta que retire todos os pendentes existentes (inclinações da linha), a fim de permitir o uso de comboios de mercadorias de 740 metros, se tornará apenas um pouco menos caro do que a construção de uma linha nova de Aveiro à fronteira de acordo com os padrões europeus do Corredor do Atlântico. Finalmente, recordou as afirmações absurdas do ex-ministro Pedro Nuno Santos a 7 de Novembro de 2022 de que “Era só o que faltava que viessem comboios de outras operadoras” a entrar em Portugal em concorrência com a CP e a Medway.

3 O eng.º Mário Lopes recordou a má fundamentação técnica e económica  dos argumentos usados pelo governo  para justificar o adiamento indefinido da introdução da bitola europeia, nomeadamente: (1) as soluções de eixos variáveis defendidas pelo Governo no âmbito do PRR, não são uma boa solução permanente, mostrando documentos dos fabricantes a dizer que são apenas uma tecnologia para facilitar a transição para a bitola europeia em Espanha e, além disso, nenhum operador  internacional investiria numa tecnologia cara e ineficiente para entrar com os seus comboios numa pequena economia na extremidade da Europa e de apenas dez milhões de habitantes; (2) a razão da Espanha dar prioridade à construção da ferrovia para mercadorias em direcção a França e ao corredor do Mediterrâneo é compreensível porque privilegia as suas próprias exportações e a ligação ao porto de Algeciras – concorrente de Sines – porque Portugal nada fez ou pretende fazer e decidiu manter a bitola ibérica; (3) os custos elevados que o Governo evoca para substituir a bitola ibérica serão obviamente muito maiores quando Portugal decidir finalmente optar pela bitola europeia e sem os actuais apoios da UE; (4) finalmente, que o Governo tem induzido em erro a opinião pública e a Comissão europeia, o que demonstrou com uma carta da Comissão.

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A sessão terminou com uma intervenção do secretário de Estado das Infraestruturas que justificou todas as opções feitas pelo Governo, repetindo várias vezes que “nas actuais circunstâncias” esta ou aquela solução seria a melhor. Ou seja, este Governo do PS ainda não compreendeu que um grande investimento na ferrovia se faz para cem anos e não apenas para as “actuais circunstâncias”. Pior, que Portugal é o único país europeu que segue em contramão relativamente a todos os restantes países que convivem bem com a economia de mercado e não hesitaram em adoptar a bitola europeia nas suas ferrovias.

A Ordem dos Engenheiros está de parabéns por esta iniciativa que permitiu o confronto das posições do Governo destinadas a justificar o isolamento de Portugal no contexto europeu e a visão dos defensores de uma moderna ferrovia europeia que melhore a competitividade da nossa economia na Europa e evite que sejamos o carro vassoura da União Europeia, além de permitir utilizar os fundos europeus disponibilizados para o efeito.

Uma nota final para recordar que a Ordem dos Engenheiros ainda não apresentou a sua própria visão sobre o futuro da ferrovia, como foi hábito no passado em relação aos grandes debates nacionais envolvendo a engenharia portuguesa.