Quando comecei a minha formação em Psicologia, no início da década de 90 do século passado, a área da saúde mental em Portugal era quase deserta, consistindo, essencialmente, em algumas unidades de Psiquiatria (e alguns Hospitais dedicados) e em intervenções ligadas à dependência de drogas. Tudo o mais eram exceções. Dizia-se, também por isso, que não existia uma verdadeira intervenção em Saúde Mental, mas sim, na Doença Mental. Dito isto, e antes que o leitor comece a pensar em interromper a leitura, por antecipar que este artigo se vai focar em preciosismos de linguagem, peço-lhe que me acompanhe e que verifique de que não se trata disso.

Sempre me questionei sobre o “porquê” da expressão “Saúde Mental”. Afinal, a mente é parte integrante do indivíduo, pelo que falar em saúde deveria fazer referência direta a todas as suas dimensões. Afinal, se não nos referimos à saúde cardíaca ou à saúde respiratória, porque haveríamos de o fazer em relação à saúde mental? Encontro duas explicações para isso: uma que considero, provavelmente, a verdadeira e de que não gosto, e outra que provavelmente não é real, mas que defendo. Aquela que não gosto é legitimada pelo estigma associado às perturbações da mente e do comportamento humano. Distingue-se a Saúde Mental da Saúde porque, na verdade, não se olha para as perturbações mentais do mesmo modo do que para as outras patologias. Mesmo alguns profissionais da área. Erradamente, as perturbações mentais são facilmente associadas a ideias de culpa, fraqueza espiritual, moral ou de vontade, no fundo a incapacidade ou a qualquer outro adjetivo que coloca as pessoas que sofrem de perturbações mentais como responsáveis, pelo menos em parte, pelos seus próprios desequilíbrios. Não se estranhe por isso que as pessoas, nesta área da saúde, resistam a procurar ajuda porque tentam acreditar, até ao limite, que conseguirão equilibrar-se por si próprias, já que considerar o contrário será assumir essa incapacidade, incompetência ou defeito.

A justificação que mais gosto, e que provavelmente não é totalmente verdadeira, mas que ainda assim é aquela que utilizo nas minhas aulas (com as devidas ressalvas) é que a grande diversidade humana está, precisamente, ao nível mental, muito mais do que ao nível somático. Ou seja, as pessoas são muito mais diferentes a nível psicológico do que a nível físico. Neste sentido, as manifestações de desequilíbrio da mente são muito mais diversas entre si do que as de funcionamento do corpo. Logo, as intervenções na área da saúde mental terão, necessariamente, uma filosofia bem diferente da filosofia das intervenções nos outros campos da saúde. Acreditar, por isso, que a mesma intervenção ou tratamento em duas pessoas com a mesma perturbação terá o mesmo resultado final é irracional e redutor. Do mesmo modo, a prevenção terá também que ser o mais possível focada nos indivíduos, uma vez que as causas e predisposições são muitas vezes particulares. Na saúde mental as intervenções deverão ser adaptadas às características de cada um, exigindo, por isso mesmo, cuidados de saúde ainda mais personalizados.

Por isso mesmo, continuo a sentir alguma perplexidade quando vejo a insistência de alguns em procurar reduzir as intervenções na saúde mental a uma ou duas dimensões, seja ela biológica ou social. Dicotomizar a Saúde Mental, defendendo que as pessoas ou estão saudáveis ou estão doentes, é um erro tão grave como responsabilizar as pessoas pelas suas dificuldades. Ignorar que a maioria das pessoas que desenvolve uma doença mental não o faz de um dia para o outro, mas sim ao longo do tempo, é o mesmo que pedir às pessoas que sejam resilientes quando estas se sentem a chegar ao limite. A intervenção neste campo, para ser eficaz, tem que ser preventiva, ou seja, tem que começar antes do aparecimento de qualquer diagnóstico clínico, assuma ele o nome que assumir depois. A intervenção neste campo, para ser eficaz, tem que ser diversificada e de fácil acesso, considerando as diversas esferas vivenciais das pessoas. Não pode estar resumida a alguns contextos específicos, não pode ser apenas biológica, social ou psicológica, e tem que ser pró-ativa, deve ir à procura das pessoas, normalizando o contacto com os profissionais desta área.

Tenho participado em algumas reuniões relevantes com os diversos agentes que intervêm no campo da saúde mental. Todos concordam que o momento atual é único em virtude da atenção que tem merecido na sociedade em geral. Contudo, a sensação que me fica, é que faltou sempre tanto, a saúde mental foi sempre tão escondida “debaixo do tapete”, que qualquer desenvolvimento positivo extasia os agentes que trabalham nesta área. Se alguém nada tem, qualquer coisa que lhe seja dado é sentido como muito bom, ainda que, na verdade, seja muito insuficiente. Da minha parte, se me perguntam se as medidas previstas para a saúde mental são suficientes, eu respondo claramente que não. Como se poderão julgar suficientes medidas que perspetivam a intervenção em saúde mental de uma forma redutora, insistindo numa dicotomia saúde/doença, ignorando a promoção do bem-estar, continuando a olhar a prevenção como se fazia há 40 anos, e ignorando os desenvolvimentos das ciências comportamentais, e mais especificamente da psicologia. Se existe área onde a transdisciplinaridade deve ser norma, é esta. Se existe área onde a acessibilidade deve ser prioritária, é esta. Se existe área onde o sucesso das intervenções é muito condicionado pelas características das pessoas, também é esta. Sim, entre outras ações, vamos ter 40 novas equipas comunitárias no País, é certo, é inédito e é necessário. Mas falta quase tudo o resto.

Como poderemos ficar tranquilos se continuamos impossibilitados de aceder a Psicólogos nos cuidados de saúde primários (CSP), como muito bem defendeu o Coordenador do Programa Nacional de Saúde Mental e os Bastonários das Ordens dos Médicos e dos Psicólogos? Como vamos articular a este nível se não existem profissionais para dar respostas? Ou acreditamos que o acesso ao Serviço Nacional de Saúde vai deixar de se fazer pelos CSP? Como poderemos ficar tranquilos se não nos preocuparmos com as intervenções nos locais de trabalho, nas escolas ou nas estruturas residenciais para pessoas idosas? Prevenir é promover a literacia e permitir às pessoas saberem mais sobre a sua saúde psicológica, é intervir numa fase precoce, é formar os diversos agentes da comunidade na identificação das dificuldades e na diminuição dos estigmas. É, pois, perceber que a promoção da saúde mental não é apenas o combate à doença mental e a procura do diagnóstico, mas também a promoção do bem-estar das pessoas e deste modo, da sua saúde psicológica.

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Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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