No final da Idade Média, em toda a Europa Ocidental, incluindo Portugal, o quotidiano hospitalar deparava-se com inúmeras dificuldades: multiplicação de pequenas instituições, formas de administração desajustadas, administradores inexistentes ou negligentes, baixos rendimentos e incumprimento de estatutos, regulamentos e obrigações testamentárias previstas pelos fundadores. Este contexto, e outras questões sociais de relevo, fomentou um intenso debate sobre as questões da pobreza, as formas de assistência e de administração destas instituições, e o papel da esmola.
A reação a esta situação seria a reforma e reorganização da assistência e das suas instituições, que se verificou por toda a Europa desde o século XIV e, mais intensamente, durante os séculos XV e XVI, com particularidades locais vinculadas a questões de organização político-administrativa das regiões e às caraterísticas das próprias instituições de assistência em cada local.
Os vários autores que se têm dedicado ao estudo do processo de reforma e reorganização da assistência têm destacado dois aspectos no caso português. Por um lado, o aparecimento do hospital moderno, com a instituição do Hospital Real de Todos-os-Santos (c. 1483) e, por outro, a criação e difusão das Misericórdias (1498), sendo a criação das Confrarias da Misericórdia uma especificidade e originalidade portuguesas no contexto da praxis assistencial da Idade Moderna europeia.
O Rossio, com o Hospital Real de Todos os Santos no lado direito da Praça (séc. XVI).
Quando falamos de reforma da assistência, referimo-nos, principalmente, a iniciativas que visavam melhorar a gestão dos bens e da vida quotidiana, racionalizar os recursos financeiros e assistenciais e cumprir a vontade dos fundadores da instituição. Estes consubstanciavam-se em projetos de regulamentos e documentos normativos; elaboração de livros de contabilidade e registos patrimoniais; substituição de administradores, nomeação de oficiais da confiança dos monarcas; reorganização institucional com a fusão ou incorporação de pequenos hospitais em grandes instituições; e, ainda, a criação de novas instituições assistenciais.
Nos reinados de D. Duarte e, principalmente, de D. Afonso V, existem diferentes medidas que indiciam este pensamento reformista; tendo em conta a documentação oficial da chancelaria real, existem mais de duas centenas de documentos que se referem às ações dos monarcas. Mas é no reinado de D. João II que o processo se torna mais sistemático. D. João II, ainda príncipe, obteve uma bula do Papa Sisto IV, a 13 de agosto de 1479, autorizando a construção de um grande hospital em Lisboa, com o poder de unir e incorporar os outros hospitais e asilos da cidade. Posteriormente, outra bula do Papa Inocêncio VIII, datada de 21 de fevereiro de 1486, permitiu ao rei unir os hospitais de crianças pobres e abandonadas de cada cidade e das vilas notáveis dos seus reinos e domínios com o maior hospital de cada localidade.
Na sequência da primeira bula, foi criado o Hospital Real de Todos-os-Santos, que constituiu uma instituição experimental, um modelo a ser aplicado nos outros territórios do reino. A sua modernidade está vinculada à qualidade institucional que adquiriu, bem como à importância que os serviços médicos adquiriram no contexto do seu funcionamento. A instituição hospitalar foi, desde o início, um projeto régio, concebido por D. João II e concluído por D. Manuel. Durante o reinado deste monarca, foram criados outros hospitais em todo o país com o mesmo conceito apresentado pelo Hospital Real de Todos-os-Santos, promovidos pela Coroa, pela Igreja e pela nobreza.
O Compromisso da Confraria da Misericórdia de Lisboa, 1516 (imagem Biblioteca Nacional Digital)
As questões inerentes à reforma dos cuidados de saúde em Portugal, no período compreendido entre o final da Idade Média e o início da Idade Moderna, estão intimamente relacionadas com a criação do Hospital moderno, em finais do século XV. Mas esta reforma não se estabeleceu com a fundação deste tipo de hospital; este foi apenas um dos seus momentos decisivos. Podemos antecipar a vontade desta reforma durante pelo menos um século, com diferentes ações que procuravam a criação de novas instituições e meios mais eficientes em termos de administração e prestação da caridade. E este facto coloca o panorama português a par do europeu, sem hiato cronológico e até com alguma coincidência de iniciativas.
Outro aspeto importante deste processo de reforma da assistência é a sua dimensão, ou seja, afetou várias áreas, desde as questões meramente administrativas até às questões médicas e de saúde pública.
O panorama da assistência portuguesa no dealbar da modernidade ganhou especificidade em relação a outros países europeus com a criação e difusão das Confrarias da Misericórdia. Estas confrarias foram as principais protagonistas da assistência até ao final da Idade Moderna. Incentivadas pelo poder régio, foram instrumentos do poder local e asseguraram a gestão da maioria dos serviços assistenciais e hospitalares existentes no país, através de anexações promovidas pelos monarcas, num contexto sócio-religioso muito específico.
[Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência de Portugal.]