Em 2012, o teórico norte-americano da geopolítica Robert D. Kaplan editava um livro que não passou despercebido a muitos de nós. Nesse livro, o autor apresenta argumentos de que a narrativa hegeliana do “fim da história“- que afirmava uma disseminação global e estabilização do modelo democrático, liberal e capitalista – não tinha de facto acontecido. Os tempos que vivemos estão a dar-lhe razão.

Para Kaplan, a Geografia é e será sempre um factor fundamental de diferenciação dos povos, nas suas vivências e sociedades, porque é uma permanente condicionante da actividade humana, seja ela política, económica ou estratégica, impondo restrições distintas à política interna e à estratégia externa de cada nação, enquanto oferece oportunidades únicas para cada uma delas. Esse livro chama-se A Vingança da Geografia e, em síntese, recorda-nos a todos que “…as montanhas ainda lá estão e estarão quando nós já nos tivermos ido embora”, isto por muito que pensemos que a tecnologia e o mundo digital redesenharam e reconstruiram as nossas vidas.

A pandemia da Covid-19 é uma demonstração, para todos os esquecidos, de que “as montanhas ainda aqui estão”. O espaço físico regressou e ocupou o espaço comunicacional com as referências diárias nos media à distância até ao hospital mais próximo, à velocidade de propagação do vírus, à proximidade dos centros de triagem, às áreas de influência das cercas sanitárias. Numa palavra: Geografia. De repente, o “onde” estava em todo o lado!

Nos últimos séculos, as novas tecnologias tiveram impactos tremendos nos transportes e nas comunicações e fizeram a Geografia parecer cada vez menos relevante. Os contentores e os vagões ferroviários, são estruturas que tiveram o efeito de transformar a distância física em distância relativa, alterando profundamente a forma como as empresas e os produtos se fixavam e movimentavam no espaço. O telégrafo, o telefone, o rádio e a televisão serviram para diminuir cada vez mais a importância da localização e da distância para a nossa forma de olhar o mundo. A internet seria o golpe de misericórdia no espaço físico. O que realmente era importante dava-se agora no ciberespaço.

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Esta pandemia vem-nos relembrar do nosso mundo físico, do nosso planeta e da nossa interacção com ele. Todos sabemos que epidemias e pandemias são questões geográficas, com várias escalas, conceito central da ciência geográfica. Tomemos assim nota que esta doença tem características regionais que afectam as populações de maneira diferente; que a propagação precisa ser rastreada estatisticamente e também geograficamente; que esta é também uma doença com consequências desiguais para a saúde e a economia de diferentes partes do mundo; que a Covid-19 trouxe também um crescente interesse na geoestratégia e na geografia política do conhecimento científico dos países, com os seus vários tipos de testes, múltiplos ensaios e vacinas, nas suas quantidades e qualidades.

Finalmente, a pandemia da Covid-19 tem consequências perturbadoras e imprevisíveis na potenciação de eventos geopolíticos como os conflitos armados e disrupções sociais violentas.

A pandemia veio acelerar a consciencialização da população para o impacto e relevância da localização. O surgimento de novos casos da doença é intrinsecamente geográfico, pois depende directamente do comportamento e proximidade entre as pessoas. As estratégias de mitigação da doença são também iniciativas onde a Geografia tem um papel fundamental pois é importante identificar locais de maior concentração de pessoas, relações de proximidade e identificação dos locais onde estas relações ocorrem com maior frequência para definir estratégias de mitigação da propagação da mesma. Uma população informada é também um elemento diferenciador no âmbito destas estratégias de mitigação e mais uma vez a Geografia tem um papel muito importante, não basta partilhar informação a um nível global pois a população é mais exigente e precisa de informação ao nível local e para as regiões que frequenta regularmente, o que torna o processo de partilha de informação e comunicação também num fenómeno geográfico.

As diferentes actividades económicas necessitam de garantir a sua continuidade de negócio e é fundamental assegurar que esta continuidade ocorre dentro das normas de segurança e práticas recomendadas. Nesta perspectiva, a Geografia tem um papel fundamental no desenvolvimento dos planos de continuidade de negócio das organizações, avaliar como dimensionar as suas equipas operacionais para continuarem a servir a população nos locais certos e dentro das restrições de segurança recomendadas, como readaptar os escritórios, lojas e outros espaços para acomodarem a quantidade certa de pessoas, garantirem a distância de segurança recomendada e, desta forma, manter as organizações saudáveis e operacionais.

A vacinação tem também um papel fundamental no processo de continuidade de negócio e no bem-estar da comunidade. Com o arranque da vacinação à escala mundial, é tempo dos governos, de todas as nações mundiais, carentes de credibilidade junto dos seus cidadãos, saberem claramente o que fazer para implementar um plano de vacinação equitativo, que garanta a prioridade das comunidades mais vulneráveis, mas também permita abranger de forma eficiente toda a comunidade.

Os sistemas de informação geográfica (SIG) são fundamentais para suportar os diferentes desafios de execução e monitorização deste plano de vacinação. Identificar adequadamente os grupos prioritários, as diferentes fases de vacinação da população que não está inserida nos grupos prioritários e os locais mais adequados para servir esta população, são análises que necessitam de ser realizadas para garantir um processo de administração mais equitativo e eficiente da vacina. Garantir os requisitos e capacidade de armazenamento das vacinas e as estratégias mais adequadas para a sua distribuição são também acções em que a Geografia tem um papel fundamental para suportar o acompanhamento no espaço e no tempo deste processo, que é fundamental para garantir que não são desperdiçados recursos importantes.

Não podemos falhar. O nível de devastação que esta crise está a causar no mundo é enorme e extremamente preocupante. Temos de acreditar e apoiar a ciência e os cientistas, que, apesar das tentativas e erros e da incompreensão de muitos, conseguiram, num ano, perceber um vírus, diversas variantes e fazer várias vacinas para o combater. A investigação partilhada entre pares da comunidade científica, a aplicação das mais recentes inovações na área da saúde, a tecnologia e os sistemas de informação, nomeadamente os geográficos, vão continuar a ajudar na irradicação deste vírus.

Acreditamos no regresso do velho normal, onde voltaremos outra vez a explorar, com os nossos mapas digitais ou em papel, as velhas montanhas que, para sempre, aqui estarão.