Hoje, uma das minhas melhores colaboradoras pediu para abandonar o Hospital, por transferência/mobilidade para uma Unidade de Saúde Familiar. Veio falar-me logo pela manhã e trazia na cara um sorriso agridoce. Percebi que estava satisfeita por ter tomado a decisão, mas triste por abandonar o Serviço onde temos trabalhado juntos nos últimos 7 anos. Percebi que foi uma decisão refletida, mas ainda assim difícil, e conversamos um pouco sobre as suas razões para tão grave decisão.
Os seus motivos são os de tantos outros que seguem este rumo. Em primeiro lugar, porque desempenha funções de coordenação dos seus colegas assistentes técnicos, mas o Estado não lhe reconhece esse papel. Nem em termos de posicionamento na carreira, nem tão pouco em termos salariais. Tem funções acrescidas em relação a todos os outros colegas (elaboração de escalas, resolução de conflitos, substituição de pessoas, resolução de questões administrativas ou relativas a registos, gestão de stocks, entre tantas outras tarefas) e o seu horário de trabalho vai muito para além da sua hora de saída. Por esse papel de coordenação não recebe qualquer acréscimo ou suplemento, Nada, zero. Apenas o reconhecimento da sua chefia, que de pouco lhe serve para o sustento do seu lar.
Depois, confessou-me estar desalentada com as assimetrias que se têm criado dentro do Serviço Nacional de Saúde, essencialmente decorrentes da proliferação de modelos de gestão e respetivos incentivos atribuídos aos profissionais. Profissionais de Unidades de saúde familiar do tipo B, centros de responsabilidade integrados e outros, recebem incentivos adicionais muito significativos e, trabalhadores como a M., mesmo que empenhados e competentes, não. Idem para os pagamentos de produção adicional: cada vez mais se institucionalizam os pagamentos adicionais ou à “peça”, como forma de retribuição aos profissionais (alguns profissionais, leia-se), o que gera incentivos perversos e agudiza sentimentos de injustiça dentro das instituições.
A M. tem família, tem filhos, tem de fazer pela vida e tem de tomar decisões racionais. Quem aguenta um trabalho tão exigente, quem suporta o encargo e a responsabilidade de gerir mais de 50 Colegas de trabalho, recebendo um salário líquido de pouco mais de 900 euros ao final do mês? Quem suporta ver colegas a ganhar o dobro, mesmo sem diferenças significativas na carga horaria ou no trabalho que fazem? Que sistema é este que não incentiva os melhores? Para quando um sistema de avaliação de desempenho coerente e eficaz, que reconheça e retribua aos melhores, e que permita alargar a todos e não apenas a alguns, o conceito de “pagamento pelo desempenho”?
Os trabalhadores da saúde são a base de qualquer sistema de prestação de cuidados e são a componente mais importante do Serviço Nacional de Saúde. Ouvimos isto incessantemente, dito por sucessivos governos ao longo dos últimos anos, mas, na verdade, isso resumiu-se quase sempre a meros exercícios de retórica. Na verdade, e na prática, a política de gestão de recursos humanos não cuidou de pessoas como a M, desperdiçando progressivamente o seu maior capital. É urgente repensar a coerência dos modelos de gestão existentes no SNS, sem balizar por baixo como é natural, mas também sem esquecer que os incentivos devem ser racionais e distribuídos de forma equitativa. Só assim se evitará a saída da M e tantos outros como ela.