“Desde o problema no coração, e com estas dificuldades de memória, já não saio com as minhas amigas (…) tenho medo de que julguem que já não estou bem. Passam-se dias sem que fale com ninguém, a televisão é a minha companhia.”

“Maria” tem 79 anos e é acompanhada em consulta de memória desde que sofreu um enfarte agudo do miocárdio. O seu isolamento é contrário ao que de mais intrínseco existe no ser humano, que é a nossa capacidade de estabelecer relações. Através delas desenvolvemos competências cognitivas fundamentais (a linguagem, o pensamento abstrato), elaboramos e representamos emoções, desenvolvemos sociedades. Muitos revemo-nos no prazer que resulta de conversas com amigos antigos ou com conhecidos recentes.

A simples possibilidade de apoio e partilha através destas relações dão segurança e conforto, geram qualidade de vida. Mas a utilidade de pedir uma cebola a um vizinho ou de contar um problema a um familiar são mais valias psicossociais em desuso. “Maria”, na sua solidão, arrisca-se a perder estas ligações que são essenciais para melhorar a saúde mental e metabólica.

São vários os estudos que apontam para a relação entre a dimensão das redes sociais reais e o volume de áreas cerebrais fundamentais para o entendimento do outro, para regulação das emoções e do comportamento individual. Assim, as relações que cada um de nós estabelece com o (s) outro(s) têm um reflexo biológico. É nesse sentido que estamos a iniciar um estudo no Instituto Universitário de Ciências da Saúde que procurará saber, entre a população mais velha, as implicações da solidão no funcionamento físico, emocional e neurocognitivo.

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Solidão é uma dimensão subjetiva, é um sentimento de desencontro entre a quantidade e a qualidade das relações sociais existentes e aquilo que a pessoa deseja. “Eu até posso ter contacto com outros, mas para mim essas relações não me satisfazem”, é uma frase comum na consulta. Apesar de subjetiva, a solidão pode ser determinada: na Europa, a sua prevalência é de 13%. O isolamento social, embora relacionado com a solidão, é uma dimensão objetiva e que se pode quantificar pelo número de contactos sociais. Em conjunto, a solidão e o isolamento atuam como stressores crónicos, que alteram a forma como o organismo funciona, como processa a libertação de hormonas e interferem no funcionamento do sistema imunitário.

A qualidade e a quantidade de relações sociais têm assim um reflexo biológico para além do cérebro. Sentir-se só é um sintoma, da mesma forma que o é a sensação de falta de energia ou de apetite.

É óbvia a implicação que a solidão tem no funcionamento emocional. A presença de sentimentos de insegurança, de maior ansiedade, de respostas alteradas às agruras do dia-a-dia e de maior dificuldade no envolvimento de atividades sociais são algumas dessas implicações. A solidão representa um risco aumentado para perturbações de ansiedade, depressão e suicídio.

A solidão e o isolamento são reconhecidos como um importante fator de risco de morbilidade e mortalidade. Surpreendentemente, até para mim, têm uma magnitude de efeito comparável, e até superior, a outros fatores de risco como o tabagismo, a obesidade e a inatividade física. Não é por isso de estranhar a associação das dimensões relacionais a um risco aumentado para diversas patologias, em 29% para a doença coronária e em 32% para o acidente vascular cerebral. E não ficamos por aqui. A solidão está relacionada com uma maior probabilidade de apresentar níveis elevados de colesterol e de diabetes e, em conjunto com o isolamento, com uma maior incidência de cancro. Pelas implicações diretas na saúde cerebral e cardiovascular, a Organização Mundial de Saúde considera a solidão e o isolamento social como um fator de risco modificável para demência.

Quer isto dizer que o podemos alterar.

Tão importante quanto sair do sofá, manter uma alimentação equilibrada, controlar a pressão arterial, não fumar e tantas outras importantes recomendações de saúde, fazer face à solidão e ao isolamento social são recomendações que devem ser prescritas.

A busca de experiências que reduzam a solidão e aumentem o sentido de ligação ao mundo são fundamentais para melhorar a saúde mental e metabólica. Esta prescrição psicossocial tem o mesmo fundamento biológico que um fármaco. Para tal, cada um de nós necessita de reconhecer as possibilidades e os recursos disponíveis e de perceber a sua posição relativamente ao resto do mundo. Este trabalho de autorreflexão poderá ser útil para evitarmos o criticismo dirigido aos outros ou a nós próprios, de manter em perspetiva as emoções negativas e não nos deixarmos envolver por elas e de reconhecermos que experiências mais difíceis e frustrantes são parte da condição humana, mas a solidão não. Devem procurar-se experiências partilhadas, como movimentos cívicos e/ou religiosos, concertos, festividades, grupos de encontro, eventos desportivos.

Por isso, “Maria”, continue a encontrar-se com as suas amigas. Todas vão beneficiar com isso.

Bruno Peixoto é neuropsicólogo, doutorado em psicobiologia e diretor do Departamento de Ciências Sociais e do Comportamento e Coordenador da Licenciatura em Psicologia do Instituto Universitário de Ciências da Saúde-CESPU.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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