Já é o terceiro orçamento em que o Governo tenta introduzir uma taxa devastadora do setor dos dispositivos médicos. O argumento é sempre igual, tal como a indústria farmacêutica esse setor também tem que pagar uma taxa extraordinária para a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde. Acontece que o dispositivo médico nada tem a ver com o medicamento. São indústrias diferentes, com sistemas regulamentares distintos e com características específicas no que respeita ao fornecimento e ao produto.
Anteriormente houve sensibilidade por parte de todos os partidos com assento parlamentar, mesmo em pleno período de crise financeira quando toda a receita extraordinária poderia ser mais justificável e a taxa não foi introduzida. Agora o setor não entende o porquê da insistência numa taxa que trará menos qualidade, mais desemprego e mais desequilíbrio entre os serviços público e privado em Portugal. Parece uma atitude cega contra tudo o que o próprio Governo defende.
A Associação da Indústria dos Dispositivos Médicos, Apormed, vem há largos meses, mesmo antes da elaboração do orçamento, pedindo uma audiência com a ministra da Saúde com o objetivo de abordar todos os problemas que o setor vem vivendo, mas nunca obteve resposta. Chegou finalmente um convite por parte da Secretaria de Estado da Saúde, já depois de o orçamento estar finalizado, sem hipótese de discussão prévia, surpreendendo a indústria com a inclusão da taxa aplicável sobre o setor. Depois de expostos os diversos problemas e características do setor que justificam o despropósito dessa taxa, o orçamento continua teimosamente a inclui-la.
Os problemas do setor são vários e vão desde a tesouraria até falta de reconhecimento da contribuição já em larga escala deste setor para a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente no suporte técnico aos hospitais e o apoio à formação dos profissionais do SNS, sem os quais a tecnologia não é introduzida nos hospitais.
O problema mais recorrente prende-se com a dependência que este setor tem dos Hospitais Públicos Portugueses que, embora tenham responsabilidade sobre a dívida, não possuem meios financeiros para a pagar, avolumando-se o prazo médio de pagamento acima dos trezentos dias, minimizado apenas por orçamentos suplementares no mês de dezembro.
Como sempre, o Governo promete que vai conseguir financiar os hospitais de forma a que estes possam pagar no prazo legal já no próximo ano, o que nunca aconteceu em quarenta anos. A indústria vai contribuindo para a sustentabilidade ao não cobrar juros de mora sobre a dívida vencida. Algumas empresas são já obrigadas a recorrer a factoring e os custos financeiros dos hospitais vão crescer naturalmente.
Por outro lado, para que a atividade se mantenha, os fornecedores vão adiantando produtos e disponibilizando equipamentos aos hospitais públicos através de consignações e empréstimos, uma vez que a Lei dos Compromissos não permite aos mesmos enviar de imediato as respetivas notas de encomenda logo após ao seu consumo ou utilização. Esta situação resulta na existência de dívida oculta, que já há vários anos vem sendo denunciada pela Apormed e frequentemente relatada à ACSS, Administração Central do Sistema de Saúde. Pois esta situação tem agravado continuamente. Neste momento o Tribunal de Contas tem recusado o visto que permite aos hospitais a celebração de contratos de fornecimento por falta de cabimento criando grande preocupação entre os profissionais de saúde que têm as prateleiras vazias nas suas unidades clínicas e não conseguem tratar os seus doentes.
Um outro problema prende-se com o não reconhecimento e valorização dos serviços de apoio para a utilização de dispositivos médicos sendo os fornecedores obrigados a tomar todo o risco desse serviço por imposição dos concursos públicos. Em Países desenvolvidos estes serviços são pagos à parte permitindo a cada hospital escolher o nível de serviço pretendido. Acresce ainda ao serviço toda a formação que a indústria dá aos profissionais de saúde, sem a qual as tecnologias não podem ser introduzidas no meio hospitalar.
Ao contrário dos medicamentos, os dispositivos médicos não são protegidos por patentes alargadas no tempo, é a indústria mais inovadora e competitiva do mercado da saúde e têm ciclos de vida em média de apenas dois anos. Ou seja, a sua dinâmica obriga sempre à constante procura demais eficiência organizacional e eficácia clínica.
Havendo em Portugal uma centralização de compras para os hospitais públicos, a escolha tende quase sempre a ter como critério único o preço. Ano após ano, o preço médio dos dispositivos médicos vem baixando, ou seja, o aumento da despesa é inferior ao aumento de produtividade dos hospitais públicos.
Ao promover mais eficiência a indústria do Dispositivo Médico reduz o custo por doente tanto a jusante como a montante, sendo que as tecnologias introduzidas resultam em menos custos posteriores comparando com as tecnologias mais antigas.
Esta situação deve ser avaliada e a indústria vem acompanhando o Regulador, o Infarmed, de forma a que as tecnologias disruptivas sejam analisadas e se criem mecanismos de avaliação das mesmas para a sua adoção. Esse mecanismo não pode ser igual ao do medicamento pela diferenciação que estes produtos exigem. Para tal, a indústria dos dispositivos já paga uma taxa para comercialização dos seus produtos que é cobrada sobre as vendas totais, ao contrário doutros países onde em vez da taxa existe um preço fixo, sendo o valor resultante justificada para a vigilância e monitorização dos produtos por parte do Regulador. A taxa já cobrada em Portugal é a mais alta cobrada a nível europeu, entre os poucos que cobram uma taxa, e atinge um montante que parece ser suficiente para todo o serviço, monitorização e avaliação.
A nova taxa para a sustentabilidade do SNS, de um a quatro por cento das vendas das empresas, é dez vezes superior à taxa existente para a vigilância dos produtos e pretende servir para a avaliação e para investimento em novas tecnologias. A nova taxa incide sobre as vendas das empresas e é crescente consoante o seu volume, independentemente de as empresas apresentarem lucros ou prejuízos. Não sendo aplicada sobre cada tipo de produto cria desequilíbrios a nível da concorrência, pois as empresas serão afetadas com taxas diferentes dependentemente do seu volume de vendas total.
Não há dúvidas que afetar uma taxa num setor tem consequências na decisão de aposta num país por parte dos seus investidores. Se já há descrédito por causa das condições limitadoras do nosso mercado caracterizado por centralização de compras com escolha apenas baseada no critério preço permitindo a entrada de produtos sem qualidade que, muitas vezes, resultam em mais custos para o Estado, por prazos de pagamento muito dilatados, pela pesada máquina administrativa para contratação e para investigação e já agora pela ausência de reconhecimento do que uma indústria contribui diariamente para a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde, a introdução de uma taxa cega, que desconsidera todos os pontos aqui expostos, virá comprometer a qualidade do serviço, o nível de emprego, a entrada da inovação e a atração ao investimento estrangeiro que o Governo e todos nós pretendemos.
A saúde é um bem precioso. Quanto melhores forem os serviços prestados, mais crescerá a produtividade do país, mais se atrairá a investigação e melhores condições teremos para aumentarmos a nossa participação na cadeia de valor das indústrias associadas ao setor, seja o turismo de saúde, a fabricação de produtos ou o desenvolvimento de tecnologias paralelas. A saúde não é um gasto, não é uma despesa, é antes de mais um investimento e por si só um contributo para a sustentabilidade.