Na França da consolidação do absolutismo de Luís XIV, onde pontificava Bossuet e a sua “política tirada das palavras da Sagrada Escritura”, os dois conhecimentos essenciais e bastantes para o homem eram “a Teologia e a Gramática: a Teologia para conhecer os mistérios de Deus e da Criação; a Gramática para os traduzir e transmitir”.
Outras narrativas e autoridades legitimadoras viriam, mas ali “a bíblia” era mesmo a Bíblia e, logo, o campo de batalha dos que queriam, na intemporal denúncia de Espinosa, “extorquir dos livros santos a confirmação dos seus devaneios e dos seus sistemas, a fim de os cobrirem com a autoridade de Deus.”
E no final desse século XVII, que vivera toda a crise político-religiosa da Guerra dos Trinta Anos no coração da Europa, e da Revolução Inglesa, com os seus muitos radicais autoritários e messiânicos, os focos de polémica e dissidência acendiam-se. Em França, depois de Bayle e da sua “desconstrução dos milagres”, aparecia a Histoire Critique du Vieux Testament, de Richard Simon, seguida de outras obras polémicas sobre a Bíblia. Richard Simon era um oratoriano que estudara as línguas orientais – hebreu, siríaco, copta, árabe – e que, nas bibliotecas da ordem, compilara e comparara manuscritos bíblicos. Tratava a Bíblia, o Velho e o Novo Testamento, como um livro de História, fazendo a exegese das fontes, das percepções alternativas e das versões contraditórias dos doutores judeus. E Bossuet ia contrapondo e reagindo a Simon e ao uso que fazia da História e dos seus métodos para examinar os Livros Sagrados, minando a autoridade interpretativa da Igreja.
Estávamos na França do Rei-Sol mas, ainda assim, o poderoso Jacques-Bénigne Bossuet, bispo, teólogo, orador e defensor do poder divino e absoluto do Rei, resistia à tentação de usar a arma censória contra Simon: tinha, dizia-se, demasiado amor pelas almas, respeito pela razão e vontade de esclarecer os espíritos para o fazer.
Achei interessante lembrar esta polémica, que durou anos, em plena França absolutista, perante o clima de progressiva proibição, interdito e denúncia que vivemos hoje, em plena democracia liberal.
Aqui, longe do absolutismo, cada vez mais se cala a controvérsia e se adensa a ausência de qualquer espécie de “amor pelas almas, respeito pela razão e vontade de esclarecimento dos espíritos”. Até porque os radicais “devaneios” dos que agora querem impor os “seus sistemas” são apressadamente confirmados e autorizados, não já dissecando e torcendo os “livros santos”, mas evocando sacrossantas cartilhas de duvidosa proveniência, arremessadas ao povo como Progresso, Ciência e Direitos Humanos.
Acresce ainda que quem hoje está do lado do poder, não só não hesita em recorrer à “arma censória” como ainda insiste em pousar como tolerante dissidente, como bom rebelde, como advogado de (quase) todas as vítimas, ou como vítima, propriamente dita; defendendo a ortodoxia e perseguindo em seu nome mas querendo passar por heterodoxo.
À semelhança dos que outrora implantaram regimes totalitários em nome do proletariado, desencadeando a luta de classes e instalando-se no poder como vanguarda das “vítimas da fome”, esta nova vaga de “revolucionários da tolerância”, herdeira não já da dureza e seriedade da revolução de Outubro mas da ludicidade burguesa do Maio francês, quer instalar-se ou manter-se no poder, impondo uma cultura totalitária em nome de um novo rol de vítimas de um outro tipo de fomes – frequentemente mais metafóricas ou imaginárias do que reais. Não é já, por isso, a “ditadura do proletariado”, mas o absolutismo das “minorias”, ou de certas minorias – as susceptíveis de integrarem o catálogo de um novo, volátil e versátil “proletariado” a instrumentalizar, um “proletariado” vitimado pelo racismo, pelo sexismo, pela homofobia, pela transfobia de opressores também já pré-catalogados.
Este poder “em nome das vítimas” é, assim, uma herança da contra-cultura dos anos 60, que, por índole e táctica, quer guardar o melhor de dois mundos, e não pode, por isso, admitir que está hoje do lado do poder ou mais que instalada e estabelecida como cultura dominante – e ao “serviço do capital”.
Porque não pode deixar de ser sintomático que o “grande capital” e as “forças vivas” do sistema sejam agora “progressistas” – dos bilionários da Big-Tech (e dos dez mais ricos dos Estados Unidos, tirando os irmãos Koch), à Academia e aos grandes media. E não pode também deixar de ser sintomática a neutralidade colaborante de grande parte das elites sociais, que, sobretudo em sociedades periféricas, como a nossa, têm medo da sombra, são intelectualmente inseguras e precisam de assumir posições “dominantes” para não ficarem nervosas.
A nova vaga tem, assim, tudo a seu favor – tudo menos, talvez, o povo, o povo comum, o “Terceiro Estado”, incluindo a classe média em perda; precisamente aqueles a quem quer calar, chamando-lhes deploráveis e fascistas sempre que “votam mal”. E, aparentemente, têm vindo a “votar mal” mais do que o desejável, porque o avanço eleitoral da “não esquerda” na Europa é claro.
Mas o que também é claro é que os mandarins desta contra-cultura chegada ao topo do poder político-cultural, estão a recorrer cada vez mais à “arma censória”. Será a percepção do avanço de um “poder popular” (ou “populista”) que está a motivar a radicalização frenética, a permanente deturpação dos factos, a tendência denunciatória e incriminatória de toda a dissidência ou discordância como manifestação de “fascismo” a que temos vindo a assistir?
E como a luta de classes saiu do horizonte e as tentativas violentas de assalto ao poder dos anos vinte e trinta tiveram consequências trágicas e inesquecíveis para os comunistas italianos, alemães, espanhóis e seus aliados, a actual repressão já não é nem pode ser a dos Estalines e dos Maos, ou sequer a dos românticos latinos, Castro e Che. Não. A repressão faz-se agora mais à Maio de 68 em versão revista e aumentada – é a marcha da distorção, da denúncia, do silenciamento, do cancelamento; o uso dos aparelhos comunicacionais para apedrejar qualquer dessacralização, séria ou humorística, das vacas sagradas do novo credo, denunciando prontamente como “discurso de ódio” ou “homofobia” até mesmo a ausência de hossanas e incitando “os estudantes” à histeria reactiva ao mais leve indício de não-alinhamento com a “verdade estabelecida”.
Dois casos recentes documentam esta linha de pressão e interdição: o primeiro é a condenação, a nível do Conselho Europeu, da legislação húngara sobre educação sexual, que inclui medidas de combate à pedofilia e interdita o ensino da ideologia de género como “ciência”; legislação considerada por 17 dos 27 responsáveis políticos da UE de tal forma “homofóbica e anti-LGBT” que a própria neutralidade de alguns Estados foi tida como uma afronta.
O segundo foi o voto favorável do Parlamento Europeu à proposta de resolução do deputado socialista croata Predrag Fred Matić, que pretende incluir o aborto no elenco dos direitos humanos e remover todo e qualquer obstáculo que o limite. Honrando uma herança da esquerda radical, a resolução quer começar desde já a dobrar o “povo” através de legislação pedagógica não vinculativa. Por um malabarismo semântico-jurídico, propõe-se, primeiro, para o aborto o estatuto de “direito humano”; instam-se depois os Estados que “ainda” tenham leis restritivas em relação à prática a “evoluir”; e, finalmente, redefine-se como “negação de cuidados médicos” a objecção de consciência dos profissionais ou instituições de saúde contrários à execução do novo “direito” (habilmente acrescentado a um texto legitimador, a Carta dos Direitos Humanos, onde “o direito” não está).
O Primeiro-ministro húngaro refutou as acusações de homofobia dizendo que, na vigência do regime comunista, tinha defendido os homossexuais que os donos do poder então discriminavam, perseguiam e encarceravam; acrescentando que as suas leis, aprovadas por uma larguíssima maioria, se limitavam a regular a protecção dos menores de propaganda de natureza sexual.
Já o voto do Parlamento Europeu revela uma escalada para impor, por estratégia indirecta, a Agenda de desconstrução dos valores fundamentais da Europa, com absoluto desprezo pela tradição ocidental da liberdade de consciência, que pretende abolir.
Quando em França, nas discussões que precederam a aprovação da “Lei Veil”, a própria Simone Veil afirmou que “naturalmente nenhum médico ou auxiliar médico” seria “obrigado a participar”, essa cláusula de consciência foi um elemento essencial para que a lei passasse. E a liberdade de consciência, além de estar consagrada nos Direitos do Homem e do Cidadão e de ser reconhecida pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem é também, no caso do aborto, um direito reforçado pela OMS, pela Associação Médica Mundial e pela Federação Internacional dos Ginecologistas e Obstetras.
Mas mais importante que todas estas leis escritas é uma tradição de valores que, desde a Antígona, coloca acima do direito positivo as convicções profundas e íntimas de alguém. É essa liberdade de consciência, confirmada pela repetida disponibilidade de pagar o seu preço nas tiranias, que explica a maioria dos mártires e todos os que, ao longo dos séculos, deram a vida por um princípio.
A protecção da objecção de consciência é, precisamente, uma das características das sociedades livres do Ocidente, mantida e reafirmada pelo humanismo liberal. Querer penalizá-la, suprimi-la ou cancelá-la não pode deixar de ser um indício do perigoso rumo iliberal que a nova Esquerda está apostada em prosseguir.
Mas dos números da votação da resolução Matić (378 a favor, 255 contra e 42 abstenções) e do clima dos debates pode também concluir-se que, se há uma estratégia de ocupação e hegemonia nas questões fracturantes por parte da Esquerda, também há, cada vez mais, uma determinação de resistência.
Há também uma crescente consciencialização de que as questões identitárias – de identidade civilizacional, nacional, religiosa e familiar – são questões importantes, senão mesmo as mais importantes. Até porque num tempo em que só há uma economia – a de mercado – em economia todos ou quase todos estão de acordo. São, por isso, os valores civilizacionais, nacionais, religiosos, sociais, familiares que vão marcar divisões e decisões, ofensivas e resistências.
Bossuet e Richard Simon, cada um no seu campo, tinham o denominador comum da fé e da paixão pela verdade. E Simon respeita a História e os seus métodos, que distingue da Teologia, rejeitando o que na Tradição lhe parece contrário à Razão. Argumenta com base na análise dos textos e da Filosofia. E fá-lo em consciência, acabando a combater, à direita e à esquerda, a sua própria congregação do Oratório, os Beneditinos, os Jesuítas, a Sorbonne e os protestantes. E se a Igreja o vê com suspeição e os protestantes também, os Enciclopedistas, no seu fanatismo anti-católico, desprezam-no.
O que é impressionante no seu duelo com Boussuet, numa França submetida ao absolutismo do poder real, é o vigor e a continuidade da polémica, aqui e ali interrompida pela autoridade política ou eclesiástica, mas sempre rica em argumentos e em paixão. E, sobretudo, em seriedade e procura da verdade.
O que vemos hoje é a afirmação progressiva de um espírito sectário, que procura atribuir a posições puramente ideológicas a qualidade de verdades científicas indiscutíveis, demonizando a contradição e os contraditores para calar qualquer polémica.
Boussuet, que poderia ter recorrido à autoridade eclesiástica e temporal para calar o adversário, foi bem menos absolutista e intolerante e bem menos lesto em usar a arma censória do que hoje o são os virtuosos portadores da liberdade e da tolerância, que não toleram a polémica e cancelam tudo o que possa pôr em causa as suas certezas.