Ano após ano centenas de pessoas rumam a Fátima em peregrinação, vindos de todos os cantos do país e este ano eu própria me juntei a esse movimento, no dia 25 de abril, o dia da Liberdade.

Naquele dia, com a mochila às costas, água, sapatos apropriados, o básico e muita disposição, parti a caminho de Fátima, acompanhada por um grupo de aproximadamente setecentas pessoas de todas as idades e origens, que escolheram celebrar a sua fé no mesmo dia em que comemoramos o privilégio de viver num país onde todos, sem exceção, têm o direito à livre expressão da sua opinião, das suas convicções políticas e das suas confissões religiosas.

Escolheram exercer o direito de acreditar que a aleatoriedade que nos governa a vida encerra um significado maior, transcendente e que existe um sentido para tudo quanto, durante a nossa passagem pela vida, experimentamos, sentimos e fazemos ou deixamos de fazer.

Vivemos num mundo baseado no conhecimento e na tecnologia, onde para tudo se vão estabelecendo as causas e os respetivos efeitos, aliviando-nos de muitas das nossas inquietações sobre os mistérios que nos assombram, pois, afinal, é só uma questão de tempo até que a ciência alcance as nossas dúvidas e identifique os fenómenos, enuncie as leis e traga as explicações lógicas e racionais que até então nos faltavam.

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Ocupados com a azáfama do quotidiano, nos vamos afastando de uma espiritualidade que em tempos idos ajudava a enquadrar o mundo, a ter esperança e consolo quando o pior batia à porta e a aceitar os insondáveis caprichos do destino, os inexplicáveis fenómenos da natureza, a doença, a vida e a morte, trazendo à humanidade um caminho para enfrentar uma existência imprevisível, cheia de mistérios.

Apesar de todo o conhecimento que a humanidade tem vindo a acumular, o apelo do sagrado está ainda presente em muitos de nós e os motivos que nos levam a acreditar e a caminhar até Fátima são inúmeros, nascendo do mais íntimo que há em cada indivíduo.

No meu caso, paradoxalmente, é na lógica que encontro a razão para acreditar, pois me parece tudo menos lógico que, após o tanto por que passamos e sentimos, tudo termine, levando a crer que o nosso corpo resume aquilo que somos e que tudo o que aprendemos na nossa passagem pela vida e sobretudo os laços que estabelecemos com os nossos mais próximos pura e simplesmente se extinguem, sem mais.

Atrevo-me a especular que a maioria dos que rumam em direção a Fátima, fá-lo movida não apenas pela vontade de partilhar a sua fé, mas sobretudo de alimentar a esperança de que um novo caminho nos aguarda no dia em que o sol deixar de nascer para nós. A esperança de que, quando passarmos a ser apenas lembrança e saudade, esse caminho nos trará de volta os nossos mais queridos.

Guardo dos dias de peregrinação a alegria dos jovens que nos acompanharam, que cantavam e brincavam, puxando pelos mais velhos a quem o peso dos anos tornava o percurso mais duro.

Guardo a satisfação de vencer as várias etapas do caminho e alcançar os pequenos prazeres que se escondem numa refeição quente, no breve repouso, deitada sobre a relva, embalada pelas canções, entoadas pelas vozes serenas de quem reservou aqueles dias apenas para a sua fé.

Guardo as conversas que fui ouvindo ao longo do caminho, vidas, desejos e graças partilhadas por pessoas desconhecidas, unidas pela vontade de trocar experiências, de parar para refletir sobre a sua vida, de agradecer pelo muito que já têm e pedir pelos seus.

Guardo os “quilómetros de silêncio” em que, perturbada apenas pelo som dos passos, do vento e da chuva, tive a oportunidade de pensar, de me sentir grata pela vida que tenho e de me comprometer em fazer a minha parte para tornar a vida dos que me rodeiam mais leve e feliz.

Guardo, ainda mais viva, a lembrança de alguns que caminhavam carregados não apenas com a sua mochila, mas também com o peso do pavor que a vida, às vezes impiedosa, pode lançar sobre nós, ameaçando, sob várias formas, aqueles que amamos, sem os quais a nossa existência se pode transformar em mera sobrevivência, sofrimento e ausência.

Quando colocados perante tal provação, todo o resto se transforma em nada porque o temor tudo avassala, ocupa o nosso pensamento e a nossa alma, sem deixar espaço para a simplicidade do acessório.

E, nessas alturas, tantas vezes impotentes para ajudar, desorientados, perplexos perante algo que não controlamos, sem saber como continuar a acordar de manhã e levar a vida que até então tínhamos por certa, nos voltamos para o mais profundo que há em todos nós e só nos resta acreditar.

A fé é vivida de diferentes formas por cada um de nós, mas independentemente da profundidade com que a experimentamos ou exprimimos, posso agora dizer, por experiência própria, que uma emoção muito forte marca a chegada ao santuário de Fátima e que experimentá-la é algo que não deixa ninguém indiferente.

Este ano, fiz a minha primeira peregrinação e trouxe a certeza que não será a única. Ano que vem, provavelmente, caminharei até Fátima e até lá tentarei trazer para os meus dias o mesmo espírito de solidariedade, compreensão e interesse pelo próximo, que encontrei nos meus companheiros de caminhada.

Tal como as peregrinações, que têm o seu ponto alto no 13 de maio, a vida é ela própria uma caminhada na qual devemos empregar o espírito de sacrifício, o entusiasmo e a disponibilidade para com aqueles que seguem connosco, na mesma medida do que estivemos dispostos a fazer no caminho até Fátima.

Crentes ou não crentes, mais ou menos devotos, praticantes ou não, todos podem viver a experiência única de caminhar até Fátima e de, pelo menos durante alguns dias, apenas rezar ou refletir, uma oportunidade a não perder para fazer os balanços que se impõem, reconhecer aquilo que fazemos de menos bem, renovar as nossas forças para corrigir o que está errado e enfrentar a vida, as suas surpresas e os seus mistérios. Como se costuma dizer: altamente recomendado!