Aqueles que tiveram o privilégio de assistir à época de ouro de Herman José lembrar-se-ão, certamente, do programa “Monólogos Secretos”, em que Herman encarnava a personagem “Artista Bastos“, uma caricatura do escritor e jornalista Baptista Bastos.
Ficaram desse programa, além da memorável irreverência de Herman, que ousava provocar uma sociedade conservadora, acabada de sair de mais de quarenta anos de ditadura, a célebre pergunta colocada aos entrevistados que passavam pelos “Monólogos Secretos”: “Onde é que tu estavas no 25 de abril?”.
Eu, com quatro anos, fazia a vida na diáspora, demasiado nova e excessivamente longe para saber que do outro lado do Atlântico sopravam ventos de liberdade trazendo a oportunidade de fazer de Portugal um país muito diferente daquele que os meus pais e tios deixaram para trás.
Volvidos cinquenta anos sobre o 25 de abril de 74 e quase outro tanto sobre o 25 de novembro de 75, há que celebrar o muito que essas datas nos trouxeram e reconhecer que a liberdade alcançada, o fim da guerra colonial e a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE) foram o ponto de partida para transformar Portugal num país, sem dúvida, infinitamente melhor.
A liberdade trouxe antes de mais a esperança de progresso e a possibilidade de uma vida melhor para os portugueses, começando pelo acesso universal à educação e à saúde, motor para uma sociedade mais solidária e inclusiva.
Apesar de muitos erros entretanto cometidos, os portugueses alcançaram um nível de vida e uma proteção social muito apreciáveis, sendo hoje, consequentemente, muito mais exigentes nas suas expectativas e reivindicações.
Tal como no resto da Europa, reerguida sobre os destroços da Segunda Guerra Mundial, o Portugal que emergiu do fim da guerra colonial é um país pacifista, que vê a guerra e a violência, o terror e o sofrimento indescritíveis que esta acarreta como um absurdo injustificável, que não encaixa na nossa conceção de uma sociedade civilizada.
Embalados pela ilusão de que a guerra nunca mais regressaria à Europa e que estaríamos para sempre protegidos pelo “amigo americano”, os países europeus foram desmantelando a sua indústria de defesa, as suas fábricas de armamento e o seu tecido industrial, deslocalizando a sua capacidade produtiva e passando a depender de cadeias logísticas que não controlam.
Livre da guerra colonial e do esforço de defender o império, também a economia portuguesa se focou nos serviços e na criação de um Estado Social cada vez mais generoso e humanista, gerando nos cidadãos a ideia de que é possível sempre mais e melhor em matéria de direitos e apoios.
Sem coragem ou vontade de pôr cobro a esse engano, os diferentes partidos converteram o processo eleitoral em verdadeiro leilão de promessas destinadas a agradar o maior número de pessoas possível.
Não falam da proteção das nossas fronteiras, do declínio das economias europeias ou da segurança da Europa e sua dependência em áreas fundamentais.
Não o fazem porque o eleitorado português e europeu, com exceção dos países do antigo bloco soviético, não está interessado em falar de guerra e segurança.
Os eleitores só estão preocupados com a distribuição dos recursos do Estado e com o que têm pessoalmente a ganhar com essa distribuição.
Fazem mal.
Não percebem, ou não querem perceber, que o mundo mudou, que está cada vez mais perigoso e que, para piorar as coisas, deixamos de poder contar com o nosso velho e poderoso aliado, que acaba de eleger Donald Trump com uma muito confortável vantagem.
De toda a parte chegam notícias assustadoras que nos recordam que vivemos num mundo de exceção, onde o respeito pela vida humana, pelas suas várias dimensões e pela liberdade são valores maiores, cuja proteção está, há muito, sedimentada na forma como vivemos e entendemos o mundo.
Sucede, porém, que na esmagadora maioria do mundo que nos cerca não é assim, levando-me a concordar com Josep Borrell, chefe da diplomacia da União Europeia, quando referiu, em 2022, que « não podemos ser um herbívoro num mundo de carnívoros ».
Devemos estar preparados para proteger o nosso modo de vida e os nossos valores, sabendo que os carnívoros que nos rodeiam só conhecem uma linguagem, a da força.
Há males que vêm por bem e talvez a reeleição de Trump possa servir para que a Europa se ocupe finalmente da sua segurança, como é sua obrigação.
Para defender a liberdade que conquistou no abril de 74 e soube proteger no novembro de há quarenta e nove anos, também Portugal tem de fazer a sua parte no que respeita à defesa da Europa, começando por investir na sua indústria de defesa e equacionar o regresso ao serviço militar obrigatório.
Segundo uma famosa frase de origem desconhecida, « homens fortes fazem tempos fáceis, tempos fáceis geram homens fracos, homens fracos fazem tempos difíceis e tempos difíceis geram homens fortes ».
Após os difíceis anos de ditadura imposta aos portugueses, no rescaldo da mais bela das revoluções, homens fortes como Mário Soares, Francisco Sá Carneiro, Ramalho Eanes e tantos outros estiveram à altura dos conturbados tempos que se seguiram.
No novembro de 75 protegeram a nossa recém-alcançada democracia contra a ameaça comunista e garantiram, definitivamente, a nossa ligação à Europa, lançando as bases do país que hoje somos.
Eram homens fortes, tinham projetos para o País, um objetivo e uma visão. Governavam com os olhos postos no futuro, sabendo que um Portugal mais próspero e moderno acabaria por beneficiar a todos, o jovem e o reformado, o empresário e o trabalhador, o português e o imigrante…
Algures no tempo perdeu-se o rumo e, hoje, o que temos são políticos que olham para o País como um somatório de clientelas e minorias.
Os programas eleitorais refletem isso mesmo e convertem-se numa lista desarticulada de medidas pensadas para agradar aos variados grupos de pressão existentes na nossa sociedade.
A força dos homens que trouxeram a Portugal e à Europa democrática anos de paz acompanhados da ingénua ilusão de que essa paz duraria para sempre levou as gerações de líderes que lhes sucederam a centrar a sua atenção, quase exclusivamente, nas condições de vida dos seus cidadãos.
Livres da brutalidade da guerra, e confortados por um estado social que se acreditava poder crescer indefinidamente, os tempos que se seguiram foram se tornando mais fáceis, enfraqueceram as nossas gentes e aqueles que nos governam.
Por essa razão, exigimos cada vez mais e propomo-nos a cada vez menos. O trabalho e o esforço são tratados como um grande aborrecimento a evitar a todo o custo. Queremos a semana de quatro dias, a diminuição da idade da reforma, trabalhar menos horas, tele-trabalhar, ganhar mais…
Os nossos governantes falam em aumentos e em reforço dos serviços públicos, mas não se atrevem a falar em avaliação do desempenho, produtividade, mérito e exigência, leia-se, as habituais contrapartidas de melhores condições e salários.
Quando não andam afoitos a gerir todo o tipo de reivindicações, os políticos portugueses desperdiçam o seu tempo em querelas, amplificando casos e casinhos e consumindo a sua energia com temas menores que só servem para gerar uma verdadeira preocupação quanto à qualidade e sentido de estado daqueles que nos governam ou anseiam fazê-lo.
Ocupados com essas distrações, vazios de ideias para reformar Portugal, desprovidos de coragem para discutir temas sérios sem demagogia e populismo, os nossos líderes mostram que, eleitos por um povo fraco, são eles próprios fracos.
Com a escalada na guerra da Ucrânia sem fim à vista, o Médio Oriente a ferro e fogo, conflitos um pouco por toda a parte, uma Europa dependente da América e Donald Trump na Casa Branca, enfrentamos tempos indiscutivelmente difíceis.
É, pois, chegado o momento de Portugal gerar homens e mulheres fortes, cidadãos e políticos sérios, trabalhadores e dignos do legado daqueles que nos trouxeram a democracia e souberam protegê-la.
A pergunta que se impõe agora já não é onde estávamos no abril de 74, mas onde queremos estar naqueles que o futuro nos reserva.
Quanto a mim, nos abris que me esperam, desejo estar numa Europa próspera e independente, governada e habitada por pessoas capazes de proteger aquilo que o Velho Continente a duras penas construiu: uma sociedade democrática, inclusiva, apoiada no Estado de Direito, livre e solidária, mas inflexível e determinada na defesa dos seus costumes, valores e modo de vida.
E tu, onde queres estar nos próximos abris?