Armando Teófilo Rocha da Trindade nasceu em Lisboa em 28 de maio de 1937 e morreu em 2009 no dia do seu aniversário. Licenciou-se no IST em engenharia eletrotécnica (1961), doutorou-se em física em Paris (1970) e chegou a catedrático do IST em 1980. Acima de tudo, foi o maior especialista do seu tempo em ensino a distância (EaD) e uma referência incontornável para quem quiser fazer a história do EaD, tendo exercido posições destacadas como Vice-Presidente da European Distance Education Network (1990-1998) e Presidente do International Council for Open and Distance Education (1995-1999).
Quando no Ano Propedêutico (1978-1981) foi preciso ensinar milhares de alunos dispersos pelo país o Governo desafiou Rocha Trindade a liderar o processo. Eu era miúdo, mas recordo as preleções entusiasmadas sobre Eça do jovem Prof. Carlos Reis, e recordo também que os «furos» eram preenchidos por um misterioso solo aflautado de uma tristeza sublime. (Quando estudei em Inglaterra nos anos 90, ofereceram-me um disco de Gheorghe Zamfir que julgo desvendou o mistério).
Parte do sistema universitário inglês é igual ao nosso: aulas com professores a ensinar e alunos a anotar, mas não é exatamente assim em algumas universidades (as melhores) onde o sistema assenta em tutores que atribuem tarefas (eg, fazer até sexta-feira um ensaio de mil palavras sobre o teorema fundamental do cálculo), assistem à apresentação, sugerem reformulações e dão a tarefa seguinte. É o ensino personalizado por excelência.
Fatalmente, alguém acabaria por notar que tal sistema não requer alunos e tutor no mesmo lugar ao mesmo tempo. Assim Michael Young, o grande ideólogo do partido trabalhista pós-guerra, concebeu a Open University para levar o conhecimento às periferias geográficas, económicas e culturais. Criada em 1969 pelo Governo de Harold Wilson é em Inglaterra a primeira universidade em número de alunos de licenciatura.
Rocha Trindade viu no Ano Propedêutico o embrião de uma universidade semelhante à Open. O Reino Unido lançara uma revolução educativa imparável, mas a replicação do êxito em Portugal dependia da criação de uma excelente universidade aberta capaz de desenvolver o know how específico e estabelecer padrões e referenciais de qualidade em EaD.
Passar esta mensagem ao poder político não foi fácil. Só nos anos 80 Rocha Trindade encontrou quem o entendesse: Roberto Carneiro, também ele um engenheiro do IST e estudioso do ensino (são-lhe creditadas peças fundamentais do Processo de Bolonha), foi o ministro da Educação que primeiro viu cristalinamente a urgência de criar a Universidade Aberta. Isso aconteceu em 1988 com Rocha Trindade como primeiro Reitor e sita num palácio com valioso património histórico e artístico (sobretudo azulejos, e, atualmente, um maravilhoso Maluda) na R. da Escola Politécnica em Lisboa.
Rocha Trindade, o estudioso de reputação internacional, mostrou ser também homem de preclaro pensamento estratégico e de ação. Com o apoio do LNEC fez uma recuperação esplendorosa do Palácio Ceia e tomou uma série de medidas com vista à criação de uma universidade de excelência. Assim:
a) Desejou (e julgo não ser polémico que conseguiu) tornar a Universidade Aberta o maior e melhor editor científico do país, definindo regras muito rigorosas de redação e revisão dos materiais didáticos, tanto em termos científicos como em termos de adequação ao ensino a distância, o que conferiu características únicas a estas obras. O objetivo era levar os professores das universidades do Norte a Sul a adotarem os livros da Aberta, expondo assim uma geração inteira de licenciados portugueses à marca Universidade Aberta como marca de qualidade.
b) Para pensar e desenhar cada cadeira contratou sempre um dos maiores vultos da área conseguindo que os cursos da Aberta fossem verdadeiras «seleções nacionais» de professores.
c) Num tempo de expansão em que as universidades contratavam licenciados para dar aulas, a Aberta foi a primeira a exigir o grau de mestre. Rocha Trindade não podia exigir o grau de doutor por não os haver em número suficiente, mas repetia insistentemente que a docência universitária é para doutorados, visão consagrada 20 anos mais tarde pelo Ministro Mariano Gago.
e) Criou um estúdio de TV com mais de 70 pessoas, especialmente treinadas no ensino a distância, com regras muito claras sobre conteúdo e forma, e com equipamento que na altura rivalizava com o da RTP. A Universidade Aberta assegurava cerca de 5 horas de emissão semanal na RTP2.
f) Lançou uma política muito agressiva de formação de quadros (quis todos os docentes a doutorarem-se em tempo inferior ao máximo legal, apoiou doutoramentos em universidades estrangeiras de topo e promoveu a formação dos próprios trabalhadores incentivando-os a tirar licenciaturas, mestrados e doutoramentos). Desde o início, desejou fundar a escola portuguesa de investigação em ensino a distância. Outras universidades investigavam na área, como o grupo do Prof. Paulo Dias da Universidade do Minho, mas era sempre investigação em ensino a distância feita à distância: o laboratório vivo de EaD, como diz Paulo Dias, é a Aberta.
Mais tarde os sucessivos governos viram a enorme utilidade de haver uma universidade pública de EaD. Por exemplo, no final dos anos 90, no conflito entre professores licenciados e não licenciados, o Governo dissolveu a questão formando estes últimos, algo só possível porque havia uma universidade capaz de levar licenciaturas a cada cidade, a cada vila, a cada aldeia.
Outro exemplo. Perguntei a um aluno veterano de bioquímica da FCT/UNL por que razão muitos alunos repetentes a matemática tinham voltado a reprovar quando a prestação dos caloiros tinha sido excelente. Resposta: É preciso ter em conta que os caloiros deste ano sabem muito mais matemática do que nós; eles foram os primeiros a ter as metas do 10º ao 12º. Uma explicação luminosa, de facto. Mas a introdução das metas exigiu dar formação a todos os professores, de Monção ao Corvo ou Porto Santo, pelo que o ministro Nuno Crato recorreu à Aberta.
Ao mesmo tempo, lá fora deu-se a explosão do EaD: Índia (4 milhões de alunos/ano), Paquistão (1.3 milhões), UNED e UOC-Espanha (300 mil), Coreia do Sul (200 mil), UK (170 mil), Alemanha (77 mil), Israel (40 mil), Holanda (15 mil), crescimento acompanhado por muita investigação na área, revistas dedicadas, conferências internacionais, etc.
Infelizmente, e apesar dos esforços dos sucessivos reitores, o peculiar modelo de financiamento da Aberta assente num subsídio, uma espécie de liberalidade de cada Ministro sujeita a variações imprevistas e inexplicáveis, conduziu a que a universidade tenha apenas 6 mil alunos, não obstante servir uma das maiores comunidades linguísticas do mundo.
Uma comissão de peritos estrangeiros (convocada pelo Ministro Mariano Gago) veio cá avaliar o EaD e recomendou o aumento significativo (6 ou 7 vezes) da população estudantil e do financiamento correspondente. A OCDE pronunciou-se em sentido análogo. Por razões desconhecidas este investimento nunca ocorreu bloqueando tanto o desenvolvimento como a própria manutenção. Foram gastos milhões na requalificação de escolas, mas não foi possível canalizar uma gota desse oceano para manutenção do Palácio Ceia que segundo o LNEC está em risco de derrocar.
Outro efeito da falta de enquadramento financeiro foi a impossibilidade prática de gerir promoções na carreira. A Universidade Aberta tem uma percentagem anormalmente elevada de cientistas prestigiados (na lista dos 2500 professores portugueses com maior H-index tem quase o dobro dos que proporcionalmente deveria ter, no qur só é ultrapassada por duas ou três outras universidades), é uma das universidades portuguesas com artigos em revistas de topo, incluindo a Nature, e tem fornecido Associados e Catedráticos às melhores universidades presenciais do país como Porto, Aveiro, Lisboa ou Nova (no meu caso). Paradoxalmente, e a título de exemplo, cerca de 50% dos professores da Universidade do Porto são associados e catedráticos enquanto na Aberta não chegam a 15%. Em nenhum lado se vê tão alta concentração de grandes cientistas combinada com tão modesta taxa de recompensa do mérito.
Já no século XXI, Carlos Reis, colaborador de Rocha Trindade no Propedêutico, catedrático de provas dadas em Coimbra, ex-diretor da Biblioteca Nacional, viria a assumir a reitoria da Aberta conseguindo o que a nível mundial nunca nenhuma outra universidade tinha sequer tentado: em um ano migrou do sistema industrial de EaD para a universidade online que é hoje, promovendo ligações muito mais estreitas aluno/aluno e aluno/professor, abrindo a possibilidade (concretizada) de grandes cientistas estrangeiros lecionarem na Aberta a partir dos seus países e levando a qualidade científica dos professores portugueses (da Aberta ou de universidades com quem esta tem cursos conjuntos como a Universidade Nova de Lisboa, Coimbra, Porto, IST, etc.), aos 4 cantos da lusofonia. Carlos Reis verdadeiramente refundou a Universidade Aberta, o que só foi possível pela sua liderança firme e clarividente, aliada a uma dedicação completamente invulgar de funcionários e professores. Nas palavras de um professor da Aberta: Estive em muitas universidades em Portugal e no estrangeiro, mas nunca vi tanto amor á camisola como aqui.
Rocha Trindade simbolizava as universidades de EaD por uma antena de TV, representava as presenciais por uma catedral, e, após anos de estudo e reflexão, considerou que o futuro seria das catedrais com antena de TV (ou rato e teclado). Não obstante, só em 2015, já com o Prof. Paulo Dias vindo da Universidade do Minho para assumir a reitoria da Aberta, é que finalmente uma catedral mostrou entender o alcance da proposta de Rocha Trindade: o então Reitor da Universidade de Coimbra, Prof. João Gabriel (outro engenheiro), percebeu como um consórcio entre as duas universidades («a mais antiga e a mais moderna») permitiria alcançar novos públicos no espaço lusófono, com novos formatos, potenciando o impacto de ambas as instituições e reforçando a afirmação de Portugal no mundo. Este consórcio é, na minha opinião, o resultado da visão dos Reitores Paulo Dias (Aberta) e João Gabriel (UC), do trabalho desenvolvido por Carlos Reis na senda da visão fundacional de Rocha Trindade e ao magistério de influência de um herdeiro conceptual de ambos, o Prof. Domingos Caeiro, atual Vice-Reitor da Aberta.
A última peça nesta história de 30 anos estava reservada para o atual Ministro Manuel Heitor (outro engenheiro do IST) que realmente percebeu a necessidade de dotar a Aberta do enquadramento financeiro e legislativo necessário a cumprir a missão de estabelecer a fasquia da qualidade em EaD, permitir que ninguém ficasse excluído de uma formação superior de qualidade e cooperar com as universidades presenciais na criação de uma rede nacional de formação superior a distância, dando assim às «catedrais» os meios para montar a «antena de TV». (Marcelo Rebelo de Sousa condecorou em novembro a Universidade Aberta e embora eu não tenha nenhuma informação sobre o assunto, não ficarei surpreendido se se vier a descobrir que teve um papel não negligenciável, ou até vital, neste momento da história do EaD em Portugal).
Esta introdução de técnicas de EaD nas universidades presenciais tem um enorme potencial formativo e de qualificação da população lusófona, difícil de descrever ou até de antecipar. Permitirá promover a racionalização de meios e o aprofundamento da qualidade de docência tornando as universidades presenciais mais parecidas com as universidades inglesas de topo. Permitirá cursos cujo corpo docente seja uma seleção nacional de grandes cientistas. Permitirá levar a muitos falantes do português aquele curso de reciclagem ou requalificação de que precisam na sua atividade profissional, mas falta-lhes tempo para voltar durante um ou dois meses aos bancos da universidade mais próxima; é essa requalificação em massa pela Aprendizagem ao Longo da Vida (outro marco devido a Carlos Reis) que ficará ao alcance de um clique.
Evidentemente, tudo isto é mais fácil de dizer do que fazer, sobretudo porque esta mudança exige alterações relativamente profundas no funcionamento e na cultura das universidades presenciais; sei-o em primeira mão! Mas o caminho está aberto. E o futuro também…
Outra vantagem das «catedrais com antena de TV» é que se muitos portugueses se orgulham de terem sido alunos do professor tal, no ensino a distância é o professor que se orgulha de ter lecionado a alunos extraordinários –heroicos- com a tenacidade e garra que lhes permite somar às suas obrigações familiares e profissionais as horas necessárias a executar brilhantemente tarefas e atividades na plataforma. Como escreveu Peter Cameron um dos grandes que lecionou na Aberta: I like the idea of teaching open university students. If one can make invidious comparisons, they are on the whole more committed and enthusiastic than regular university students, since they are making very big sacrifices to study in their own time.
Julgo que ainda hoje sou o professor que esteve mais tempo no Conselho geral da Aberta e por isso, quando passam 30 anos sobre a sua fundação, deixo aqui o meu contributo para a sua história e uma pequena homenagem a Rocha Trindade: um português extraordinário, um visionário, um homem capaz de estudar e de realizar segundo o lema do Infante: Talant de bien faire. Mas graças ao trabalho dos seus continuadores e ao Ministro Manuel Heitor, parece-me que o melhor ainda está para vir!
Professor Catedrático do Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia, UNL.