Quando comecei a ler, aí por 1952, o Mundo de Aventuras saía às Quintas-Feiras e trazia uma grande colecção de heróis. O Flash Gordon, o Fantasma e o Mandrake eram os meus preferidos, os que eu ia logo ler mal saía do quiosque. O Flash Gordon tinha uma namorada linda, a Dale, e havia o Dr. Zarkov, um cientista de barbas, que os acompanhava em aventuras espaciais, no Planeta Mongo, onde lutavam contra o Imperador Ming.
O Fantasma tinha sido criado por Lee Falk em 1936, nos anos dourados da BD na América, os anos das pulp magazines e da primeira Ficção Científica. O Fantasma vivia num ambiente africano e era amigo dos pigmeus que o protegiam. Era um justiceiro implacável, sem novidades tecnológicas, mas incansável na luta contra o Mal e os maus.
O Mandrake era diferente do Flash Gordon e do Fantasma. Era uma espécie de mago que, pela indumentária, lembrava o Arsène Lupin, “Gentleman Cambrioleur”: smoking Belle Époque, cartola, capa e um bigodinho fino em serrilha. Tinha um ajudante, um negro gigantesco, o Lotário, que envergava uma pele de leopardo e que, quando era preciso recorrer a formas superiores de luta, intervinha para apoiar o patrão, já que o patrão só lutava através de truques de magia. Mandrake tinha sido imaginado também por Lee Falk, que, em meados de 1934, propusera a série, com desenhos de Phil Davis, ao King Features Syndicate. Mas Mandrake só apareceu por cá, no Mundo de Aventuras,em Outubro de 1950.
Dois anos depois, em Janeiro de 1952, dava entrada nos quiosques portugueses o CavaleiroAndante, dirigido por Adolfo Simões Müller. Simões Müller fora um pioneiro dos quadradinhos em Portugal, com O Papagaio, que fundara em 1935, e depois com o Diabrete.
Tintin em Portugal
Tintin apareceu em Portugal em 1936 no Papagaio, pela mão do padre Abel Varzim, que conhecera o boneco de Hergé em Lovaina, onde se doutorara. Foi adaptado ao colorido local e até colorido localmente, quando os desenhos (e o mundo) ainda eram a preto e branco. Tintin au Congo, de 1930, iria chamar-se aqui Tim-tim em Angola e Tintin en Amérique, a história com que O Papagaioapresentava o repórter em Portugal, Tim-Tim na América do Norte. O primeiro Tintin, Tintin au pays des Soviets, um retrato da Rússia dos sovietes e das suas selvajarias num desenho ainda incerto e grosseiro, não entrou no Papagaio.
George Remi, Hergé (RG), colaborador do jornal Le Vingtième Siècle, pode ter-se inspirado em Léon Degrelle, então repórter do Vingtième, para criar o Tintin. Na segunda metade dos anos 20, Degrelle percorrera o México insurgente dos camponeses católicos, da Cristiada, revoltados contra a política anti-religiosa de Plutarco Elías Calles e escrevera Mes Aventures au Mexique. Vindo, como Hergé, dos Escuteiros e da Acção Católica, Degrelle vai ser o fundador do Rex, um movimento de direita revolucionária e radical que se torna o rosto belga do fascismo. E Degrelle que, em 1934, se dizia próximo de Maurras e Mussolini mas hostil ao nacional-socialismo alemão, acaba na Legião Wallonie dos Waffen-SS. Um curriculum pouco recomendável para alguém que, em Tintin mon Copain, um livro póstumo, proibido na Bélgica e em França, se reclama o inspirador da personagem de Hergé.
Tintin, como toda a ficção, é susceptível de interpretações políticas e é, por vezes, explicitamente político: do anticomunismo de Tintin au pays des Soviets ao colonialismo paternalista do Tintin au Congo ou ao anti-imperialismo de Le lotus bleu. Não é, assim, de estranhar que Tintin e o seu criador, Hergé, sejam agora um dos muitos alvos da perseguição e da purga da nova polícia da moral e dos bons costumes presentes e passados, sempre atenta às supostas susceptibilidades das suas vítimas de eleição e sempre alheada de tudo o resto.
No contexto histórico do final dos anos 20, princípios dos anos 30, a Europa, ainda e sempre consciente da sua “missão civilizacional”, estava também radicalizada internamente, debatendo-se com “o perigo comunista”, um perigo real que contribuíra à partida para essa mesma radicalização. E o Petit Vingtième, o suplemento juvenil do católico Le Vingtième Siècle, do padre Norbert Wallez, era declaradamente anticomunista: daí que a história pioneira do repórter de Hergé tenha lugar no país dos sovietes.
Tintin e os censores
A incursão de Tintin no Congo Belga, em 1930, apresenta uma imagem de inequívoco colonialismo paternalista, imagem que, logo no imediato pós-guerra, Hergé não deixa de corrigir. E a caçada-massacre de animais selvagens também fere o espírito do nosso tempo, mais tolerante para com outros massacres. De qualquer forma, “os maus” da história não são ali os negros do Congo mas uns gangsters brancos, ligados a Al Capone, que pretendem controlar o comércio de diamantes da colónia.
A história de Tintin no Congo tem, agora, quase cem anos; mas como para os novos apóstolos da higienização histórica e ficcional nunca é tarde para um bom auto de fé, tal não impediu que os álbuns de Hergé fossem recentemente queimados no Canadá.
Todos nós, os que pertencemos à geração que acabou por fazer a transição entre a África colonial, de dominação europeia, e a África independente, estamos conscientes dos clichés que eram então dominantes entre colonizadores e colonizados. Os clichés que pintavam os colonizadores como imaculados civilizadores e os colonizados como seres tribalizados, fragmentados em etnias e clãs, ignorantes, primitivos, infantis, preguiçosos. Mas quem, senão um grande escritor, como Céline, em Voyage au bout de la nuit, ou um Henrique Galvão ou um Castro Soromenho, ou o ocasional missionário ou antropólogo escapava então a estes clichés? Hergé seguia a tradição e a norma que dava aos brancos a superioridade moral e o exclusivo domínio da técnica. Uma tradição agora inconscientemente continuada e exacerbada pelos novos censores, cuja sobranceria moral, a fúria “civilizadora”, o franco arremesso de rótulos, a autocontemplação da própria bondade e o paternalismo para com “as vítimas” a quem se arrogam “dar voz” ultrapassam largamente a cegueira dos antigos “opressores”. E será o que Tintin então fazia no Congo – pregando, leccionando, iluminando, disciplinando, enfim, acordando ou despertando os povos “adormecidos” para valores mais modernos e civilizados – assim tão diferente do que agora fazem grande parte das ONGs?
Não restam dúvidas de que a imagem do antigo feudo do rei Leopoldo, genialmente retratado em toda a sua crueza no Heart of Darkness de Conrad, sai melhorada nos quadradinhos de Tintin. Hergé não fora ao Congo mas visitara o museu de Tervuren. Tinha 23 anos e talvez fosse cedo para aquele exercício fundamental de se pôr na pele do outro e de pensar como experimentaria esse “outro” as nossas bondosas e por vezes insensíveis percepções.
Talvez por isso, num súbito e deslocado ataque de consciência racial e social e com a cega fúria inquisitória e compensatória dos recém-convertidos, o grupo Borders arrumou Tintin au Congo na secção de “leituras para Adultos”. Curiosamente, não foi o que se passou no bem mais pragmático, realista e complacente ex-Congo Belga, o território visado pela história: na antiga Léopoldville, hoje Kinshasa, há restaurantes e ateliers Tintin e os intelectuais locais não mostram especial animosidade em relação ao retrato histórico-fantasista de Hergé. Em Madagáscar há até um Tintin negro.
Assim, em nome da nossa humanidade comum – e curiosidade e ludicidade e desejo de aventura – Hergé e Tintin lá vão sobrevivendo à fúria inquisitória daqueles a quem todos teremos de resistir, sob pena de termos o nosso património comum, da Odisseia à Bíblia, de Dante a Shakespeare, de Dostoiévski a Eça de Queirós, censurado e mutilado pela descoberta de infindáveis “micro-agressões”, “apropriações culturais” e demonstrações de “sexismo” e de “racismo”.
Ao longo de duas dúzias de álbuns, Hergé vai-nos contando histórias, ou seja, vai-se apropriando culturalmente de tudo e de todos e micro-agredindo a torto e a direito, oferecendo matéria de sobra para o entretenimento de várias gerações de jovens dos sete aos setenta e sete anos (incluindo os que agora andam à cata de lenha para o queimarem). Assim, Milou, o cão do eterno e sempre casto adolescente Tintin, do repórter que, como todos os repórteres, não noticia, é colaboracionista como todos os animais vilmente domesticados; o capitão Haddock, fonte inesgotável de palavroso discurso de ódio, é grosseiro e bêbado como todos os capitães; os Dupont, ineficazes e repetitivos como todos os detectives; o professor Tournesol, louco e explosivo como todos os cientistas; o senhor Oliveira da Figueira, vendilhão como todos os portugueses; e os negros, os asiáticos, os esquimós, os índios, os aborígenes, parte da paisagem e mero cenário de aventura como todos os “nativos”.
Neste mundo ou mundos, além das “agressões e apropriações” de que se faz a ficção, há intrigas geopolíticas ou geoeconómicas, como em Tintin au pays de l’or noir; há desconstrução de tiranias, como nas incursões na Sildávia; e denúncia de autocracias, como com sucessão dos generais Alcazar e Tapioca, representantes do poder pretoriano na Hispanidade.
De um modo geral, Tintin é independente, em termos de direita e de esquerda. É um jovem “europeu” em cruzada divertida por mundos exóticos – balcânicos, africanos, asiáticos e americanos. Ou só um jovem à procura de um mundo maior e confrontado com a diferença. Hergé vai, entretanto, criando personagens que encarnam o bem e o mal, como o sinistro Roberto Rastapopoulos, um capitalista sem alma nem escrúpulos, que começa por aparecer em Tintin en Amérique, que depois trafica ópio no Lotus bleu e que acaba mal no Vol 714 pour Sydney. Ao combatê-lo no Lotus azul, surge um Tintin justiceiro, defensor dos fracos e oprimidos, no caso, vítimas do imperialismo britânico.
Como toda a personagem capaz de ganhar vida e de se tornar universal, Tintin está profundamente enraizado na sua cultura e no seu chão. E o facto de ser claramente “europeu” – confiante na superioridade da ciência e da tecnologia, que, nos dois volumes da viagem à Lua, preparam o feito da NASA – não o impede de respeitar conforme pode e sabe a identidade e a individualidade de culturas que lhe são estranhas e que o fascinam.
Perdido e achado nas traduções
De acordo com o Index Translationum, Les Aventures de Tintin estão no oitavo lugar das obras de expressão francesa mais traduzidas – depois de Jules Verne, Alexandre Dumas, Georges Simenon, René Goscinny, Honoré de Balzac, Charles Perrault e Antoine de Saint-Exupéry.
Esta expansão, fez-se também através da rede dos jornais da Acção Católica na Europa. Em Portugal chegou com o padre Abel Varzim e Simões Muller, no Papagaio, e a primeira experiência das tiras a cores foi portuguesa. Curiosamente, na primeira versão lusitana, Oliveira da Figueira, o comerciante de Les cigares du pharaon, passa a ser espanhol. Não terá sido considerado um bom representante da nossa raça e, pioneiros na deteção da micro-agressão, os tradutores (mas não traidores) portugueses trataram de redireccionar para Espanha o insulto. Também – colónia por colónia e metrópole por metrópole –, em vez de ir ao Congo belga, Tintin começa aqui por ir a Angola, com o mapa da Bélgica substituído pelo de Portugal. O Papagaio publicou oito aventuras de Tintin.
Hoje as aventuras de Tintin estão traduzidas em mais de 80 línguas, dando conta da qualidade e da universalidade do herói e dos seus companheiros de aventura, dos desenhos, dos enredos e, sobretudo, do humor – garantia contra todas as inquisições.
Hergé na Gulbenkian
A Gulbenkian, em colaboração com o Museu Hergé de Louvain-la-Neuve, tem em exposição, até ao dia 10 de Janeiro, uma selecção de documentos e obras do autor de Tintin, que se dedicou à banda desenhada, mas que também fez publicidade e desenho de moda e se aventurou nas artes plásticas. A mostra chama-se Hergé e vale a pena visitá-la para conhecer ou revisitar o multifacetado criador de Tintin.