A fibrose quística é uma doença genética grave, mortal, com um significativo grau de morbilidade e mortalidade precoce. A esperança média de vida para os doentes rondará os 30 a 40 anos. Durante a vida contam com internamentos frequentes, com hospitalizações que duram em média uma semana. Nalguns casos há necessidade de um transplante pulmonar, uma cirurgia delicada e com um tempo de internamento longo. Esta é a doença rara com maior incidência em Portugal, afectando cerca de 400 pessoas que estão à espera do INFARMED.
Existe uma gama de medicamentos especialmente eficazes no tratamento da doença, designados moduladores: o Kalydeco, o Orkambi, o Symkevi e, mais recentemente, o Kaftrio. O Kaftrio é aquele que permite obter resultados mais positivos no tratamento dos doentes. A qualidade de vida do paciente é aumentada e as melhorias significativas no estado dos doentes induzidas pelo Kaftrio diminuem as exacerbações pulmonares, principal causa de hospitalização por fibrose quística.
Porém, até há bem pouco tempo, os doentes com fibrose quística em Portugal eram os únicos da União Europeia que não tinham acesso a nenhum daqueles medicamentos. A Agência Europeia de Medicamentos (EMA) autorizou, em 21 de Agosto de 2020, a comercialização dentro da União Europeia do medicamento Kaftrio, destinado a pessoas que sofrem de fibrose quística. E que expectativas para os doentes portugueses quando este promissor medicamento foi autorizado pela EMA, no Verão passado? Muito poucas, seguramente. O Kalydeco e o Orkambi, aprovados pela EMA, respectivamente, em 2012 e 2015, encontravam-se então a aguardar aprovação do INFARMED desde 2016. O Symkevi, aprovado pela EMA em 2018, aguarda aprovação do INFARMED desde 2019.
Não surpreende por isso que os doentes com fibrose quística, com o apoio da Associação Portuguesa de Fibrose Quística e da Associação Nacional de Fibrose Quística, tenham lançado, em Novembro de 2020, uma petição pública para a aprovação do Kaftrio e um apelo público para que fossem aprovados medicamentos moduladores. Depois de alguma cobertura noticiosa da iniciativa, quer na imprensa escrita quer na televisão, eis que o INFARMED aprovou, no passado dia 5 de Fevereiro, os medicamentos Kalydeco e Orkambi!
E como se explica esta longa espera pelos medicamentos moduladores? O INFARMED publicou na sua página da internet orelatório de avaliação de financiamento público de Kalydeco, bem como o do Orkambi. Consultados os relatórios, não é possível compreender o que poderá ter tornado este processo tão moroso. Do que se estava à espera, afinal? Que estudo, que análise, dados, parecer, decisão, surgiram agora? Não sabemos. E não seria forçoso que soubéssemos. Afinal, é suposto termos confiança no processo de apreciação técnica levado a cabo por uma entidade administrativa especializada. Mas quando o processo é demasiado longo e o tempo dos procedimentos se salda em perda de vidas ou, no mínimo, de qualidade de vida, seria bom que todos soubéssemos o que está a impedir o processo de ser mais rápido. Será que a administração pública precisou do empurrão da opinião pública, com notícias em vários órgãos de comunicação social, para concluir o processo?
A Estratégia Integrada para as Doenças Raras 2015-2020 define como prioridades estratégicas o acesso ao tratamento, o que supõe “procedimentos adequados, transparentes e robustos de avaliação de custo-benefício de terapêuticas inovadoras de doenças raras”. Mas como pode um processo arrastar-se por mais de 5 anos e ser considerado “adequado”? Não é adequado deixar em suspenso as vidas de centenas de pessoas que têm uma esperança de vida limitada. Não é adequado não decidir. Não é adequado fazê-lo apenas quando a pressão da opinião pública põe o tema na ordem do dia. Nem é transparente que os doentes não tenham qualquer perspectiva sobre se ou quando o Kaftrio poderá vir a ser aprovado e disponibilizado.
Na Dinamarca, Alemanha, Irlanda e Reino Unido o Kaftrio já está disponível desde Outubro de 2020. No Canadá, este medicamento encontra-se a ser analisado pela Health Canada no âmbito de um processo de revisão prioritário, com o normal prazo de análise de 300 encurtado para 180 dias, dada a urgência reconhecida na sua aprovação. Em Espanha, a Agencia Española de Medicamentos y Productos Sanitarios procedeu à autorização do Kaftrio a 23 de Outubro de 2020, encontrando-se agora o financiamento a ser discutido. A Bulgária alargou o acesso ao Kaftrio a adultos em meados de Dezembro de 2020, com comparticipação estatal. A República Checa está em negociações com seguradoras para incluir o Kaftrio nos seus planos.
O Estado tem de assumir as suas responsabilidades. É angustiante pensar que podemos chegar a 28 de Fevereiro de 2025 a discutir porque é que o Kaftrio não terá ainda sido aprovado pelo INFARMED.
Chegou o último dia do mês de Fevereiro e com ele o Dia Mundial das Doenças Raras. As doenças são raras, infelizmente a burocracia não. Se as coisas foram como foram com a doença rara mais comum de todas, que esperança podem ter as pessoas com doenças raras com ainda menos visibilidade?