Sempre atento a estas coisas, o jornal Público apressou-se a dar-nos a notícia: dois artistas brasileiros que mostravam o seu trabalho no Centro Hospitalar Conde de Ferreira,  no Porto, viram um administrador desse hospital, escudado no parecer do seu director clínico, mandar encerrar uma das salas onde o expunham. Porquê? Porque nessa sala, agora encerrada, estavam peças em que faziam alusões às actividades negreiras daquele que viria a ser o Conde de Ferreira. Peças onde, por exemplo, se informava que tinha transportado cerca de 10 mil pessoas escravizadas de Angola para o Brasil e se deixavam no ar as perguntas: “quantas pessoas escravizadas vale um hospital psiquiátrico? (…) quantas pessoas escravizadas valem os títulos de nobre e benfeitor?”.

Esta notícia do Público traz-nos, por um lado, um acto de aparente censura que a Santa Casa da Misericórdia do Porto, que gere o hospital, justificou por o exposto não fazer parte da proposta em devido tempo apresentada pelos artistas e, também, por razões de natureza médica pois aquelas informações sobre o conde poderiam causar desconforto naquela comunidade hospitalar e naqueles doentes específicos. E traz-nos, por outro lado, a essência do wokismo, ou seja, o afã em julgar e condenar de forma cega, superficial, e a total incapacidade para problematizar e compreender.

Um exemplo dessa incapacidade é o artigo que, estribada na referida notícia, Cristina Roldão escreveu no Público. Nesse artigo a socióloga veio exigir que o Centro Hospitalar Conde de Ferreira recue e se demarque da decisão do seu administrador e do seu director clínico; que permita o acesso do público visitante à sala que mandou fechar; e que “peça publicamente desculpa e se posicione do lado certo da história (sic)”. Cristina Roldão quer, também, que a Câmara Municipal do Porto, a Direcção-Geral das Artes “e outras instituições com responsabilidades” se pronunciem sobre o assunto. Em suma, como militante woke que é, quer um estardalhaço, uma tempestade num copo de água, e, acima de tudo não quer que o Conde de Ferreira “seja apresentado como um benfeitor, glorificado na estatuária, na toponímia e noutros meios de memorialização.” Ou seja, e por outras palavras, quer que a sua faceta benemérita seja varrida do espaço público e da nossa memória.

O artigo de opinião de Cristina Roldão está, como é usual nesta colunista, cheio de suposições e de má informação. Está, também, distorcido pela aplicação mecânica de conceitos actuais ao passado. A socióloga acha, por exemplo, que aquilo que o Conde de Ferreira fez, no fim da vida, destinando a sua fortuna a obras de beneficência ou de utilidade pública, mais não foi do que lavagem do seu “dinheiro sujo” e do seu nome através da caridade.

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Ora, quem era o Conde de Ferreira e como compreender esse seu comportamento? Estas são as perguntas que importa fazer pois para quem não é woke e tem uma perspectiva histórica ou psicológica sobre o mundo, o ponto importante, como é óbvio, é o seguinte: por que razão um homem que fizera uma parte substancial da sua fortuna a traficar escravos sentiu vontade de fazer bem aos outros?

Nascido num subúrbio do Porto, no seio de uma família humilde, Joaquim Ferreira dos Santos emigrou, em 1800, com 18 anos de idade, para o Brasil, como sucedia frequentemente com outros jovens pobres da região do Porto ou de Entre-Douro-e-Minho. Iam, na maior parte dos casos, procurar trabalho do outro lado do Atlântico, muitos deles recomendados a  parentes ou conhecidos já aí estabelecidos. E, no plano material, as coisas não correram mal ao jovem Joaquim. No Brasil, converteu-se em negociante de sucesso e enriqueceu, ainda que a sua riqueza tivesse sido obtida, em boa parte, no tráfico de escravos africanos que, como armador, terá praticado entre 1817 e 1829, isto é, num período em que o tráfico para o Brasil, feito a sul do Equador, como era o caso, ainda era legal — algo que Cristina Roldão parece ignorar.

De regresso a Portugal, em 1832, após ter perdido a mulher e o único filho, mortos ambos muito precocemente, Joaquim Ferreira dos Santos aplicou os seus capitais, acorrendo, por essa via indirecta, às carências do país, e, em 1842, como acontecia com alguma assiduidade a pessoas que, por via da riqueza ou da acção política ou social, ascendiam à nobreza, foi feito Barão de Ferreira, e o seu nome foi, também, incluído na “fornada de pares”, como alguns jornais jocosamente apelidavam as nomeações para a Câmara dos Pares. Faria parte dessa Câmara até à sua morte, sendo feito entretanto, e sucessivamente, Visconde e, depois, Conde de Ferreira.

Notabilizou-se, entretanto, como grande benemérito e filantropo e foi, entre outras coisas, um impulsionador da instrução pública no nosso país, deixando, por sua morte, um legado para a construção e aquisição de mobília de 120 escolas primárias para ambos os sexos, todas com a mesma planta e com casa destinada ao respectivo professor. Desse legado resultou também o primeiro hospital psiquiátrico português, isto é, um edifício feito de raiz para o tratamento dos que, na época, se chamavam alienados, e que é, hoje em dia, o Centro Hospitalar Conde de Ferreira, no Porto, de que aqui se fala.

Incapazes de ver a vida e a história em toda a sua complexidade, os activistas woke são também incapazes de ver e de compreender que alguns destes homens e mulheres que fizeram parte da sua vida e da sua riqueza ligados ao tráfico de escravos tinham duas faces e várias dimensões. Foi qualquer coisa para a qual chamei a atenção já há 25 anos em Os Sons do Silêncio, o meu primeiro livro sobre o assunto. Aí mostrei que a riqueza fazia ascender os negreiros ou ex-negreiros na escala social e que os sentimentos, nomeadamente os sentimentos de culpa, talvez, os levavam a auxiliar as autoridades e os poderes políticos e os faziam ajudar carentes e desvalidos. Como aí escrevi, “os negreiros eram, muitas vezes, personalidades prestigiadas nas comunidades em que se inseriam, grandes beneméritos que apoiavam o povo e as instituições”. E exemplifiquei com os casos de Arsénio Pompílio Pompeu de Carpo, que ofereceu uma tipografia à cidade de Luanda; de Augusto Garrido, que  promoveu uma subscrição em favor dos colonos desvalidos de Moçâmedes, para a qual concorreram outros negreiros; de Manuel Pinto da Fonseca, um dos maiores negreiros na década de 1840, que, como dizia um jornal da época, “empregava os seus capitais em obras de utilidade para a Pátria” e que tinha “a bolsa sempre aberta para a caridade”; de Francisco António Flores, um negreiro brasileiro, que ofereceu generosamente carne, pão e aguardente aos presos pobres e aos libertos (antigos escravos) de Luanda; etc.

Os casos de generosidade cívica dos negreiros ou ex-negreiros poderiam multiplicar-se abundantemente com exemplos portugueses ou estrangeiros, mas o que importa notar e sublinhar aqui é a complexidade da personalidade e da acção humanas, num tempo de mudança de paradigma. Quem quer perceber a história do tráfico de escravos e a dificuldade em pôr-lhe um fim, tem de tentar compreender — falo em compreender, não em condenar ou desculpar — os aspectos contraditórios, louváveis e repreensiveis, das coisas humanas. As pessoas têm várias dimensões, várias facetas, que podem mudar ao longo do tempo, mas os woke, como todos os fanáticos, só conseguem ver e valorizar uma delas. Para eles a memória do conde devia ser cancelada, ou pelo menos, devia ser removida ou omitida a sua faceta benemérita. Alguns dos que manifestaram indignação ou reserva perante a evocação são académicos, mas enganaram-se na profissão. Deviam ter ido para a magistratura judicial, seguido a carreira de juiz ou de procurador, de inquisidor ou de carrasco, mas não a de historiador, sociólogo ou antropólogo, visto que não percebem o tempo nem o modo.

O Conde de Ferreira foi um negreiro no tempo em que o tráfico de escravos a Sul do Equador ainda era legal para portugueses e brasileiros, se bem que, aos olhos da moral e da mentalidade da época, já fosse altamente condenável e contestado. Foi, também, um benemérito que por remorso ou sentido de responsabilidade social, e uma vez que não tinha descendência directa, decidiu empregar a sua fortuna a fazer bem ao próximo em Portugal e no Brasil. É assim, dessa forma dual, que deve ser evocado e que geralmente o tem sido nos estudos, publicações e, até, no próprio jornal Público.

É claro que os artistas, que não são historiadores e que, às vezes, nem sequer são razoáveis, têm a liberdade e o direito de tratar a realidade como muito bem entendem. A sua expressão artística não deve ser censurada. Aceita-se que o seja, em condições excepcionais, se o motivo dessa censura for do foro médico e para salvaguarda dos utentes da instituição, como parece ter sido, em parte, o caso. E digo em parte porque há uma outra razão atendível e convergente que, segundo consta, também se verificou. É que ao direito dos artistas pode contrapor-se o direito dos que, disponibilizando o espaço para que esses artistas exponham as suas obras, as permitam ou não. A Santa Casa da Misericórdia do Porto permitiu-as, mas, como os próprios artistas admitem, sem ter sido devida e explicitamente informada do teor exacto da exposição e das alusões ao passado escravista do Conde de Ferreira. Daí que, a juntar às razões de natureza médica tenha encontrado fundamento para encerrar aquela sala específica, mas nenhuma das outras.