Na próxima quarta-feira,  dia 2 de Dezembro, o Plenário do Conselho Superior de Magistratura (CSM) irá analisar o teor do Acórdão de duas juízas do Tribunal da Relação de Lisboa, que considerou o confinamento profilático compulsivo de um grupo de quatro turistas nos Açores uma detenção ilegal. Um desses turistas tinha testado positivo para a RT-PCR (reação de polimerase em cadeia por transcriptase reversa) e os restantes três tinham testado negativo. A consequência imediata desta decisão foi a de permitir que um cidadão que testou positivo para o SARS-CoV-2 possa movimentar-se livremente, constituindo assim uma ameaça à saúde pública, aspeto que não parece ter preocupado as juízas quando afirmam “e não se venha novamente com o argumento de que está em causa a defesa da saúde pública”. Entenderam as magistradas complementar a sua decisão com uma série de considerandos de conteúdo técnico-científico sobre os testes RT-PCR, pondo em causa a sua fiabilidade, a qual, afirmam, “se mostra em termos de evidência científica mais do que discutível”. Presumindo que as doutas magistradas são leigas em virologia, terão recorrido a assessoria técnica no sentido de se informaram sobre o estado da arte relativo à testagem por RT-PCR para deteção do SARS-CoV-2 (“neste campo, o julgador terá de se socorrer do saber dos peritos na matéria”). Infelizmente, foi pior a emenda que o soneto, pois o que verteram no Acordão não faz o menor sentido.

Como entender que as magistradas ponham em causa a fiabilidade de testes usados há mais de 20 anos em virologia clínica para identificação de vírus e também de bactérias causadores das mais diversas patologias? A sequenciação do genoma do SARS-CoV-2 permitiu ajustar esta técnica para a deteção deste coronavírus e as autoridades de saúde de todo o mundo usam-na massivamente no combate à pandemia. Para acompanharmos o raciocínio científico do julgador é necessário relembrar em que consiste a RT-PCR.

Resumidamente, o protocolo experimental converte o RNA viral contido na amostra em DNA complementar, por via de uma reação bioquímica que requer o uso de uma enzima, a transcriptase reversa. Para que o produto de reação seja detetável, é necessário fazer cópias de pequenos segmentos do genoma viral através de um processo automatizado de ciclos de amplificação e usar marcadores fluorescentes, que permitem ao detetor do equipamento medir o nível de fluorescência da amostra ao fim de cada ciclo. Aquilo que o técnico observa num monitor é um gráfico que ilustra, em tempo real, a amplificação traduzida na variação da intensidade de fluorescência em função do número de ciclos. O ponto em que a curva de amplificação cruza a linha do limite de deteção (cut-off) permite uma quantificação relativa da carga viral, em que um baixo valor de Ct (cycle threshold) indica uma concentração elevada de material genético viral associado a alto risco de infeção, e um alto valor de Ct indica uma baixa concentração desse material. Numa análise de rotina, o número máximo de ciclos de amplificação raramente ultrapassará os 40. Desenvolvimentos experimentais vieram permitir a utilização simultânea de várias regiões do genoma do SARS-CoV-2 como alvos deste processo de amplificação/deteção, o que permite a identificação inequívoca do RNA viral.

As dúvidas que o Acordão levanta para contestar a fiabilidade da RT-PCR são relativas ao parâmetro experimental Ct: “No caso presente, ignora-se qual o número de ciclos de amplificação com que são realizados os testes PCR em Portugal.” Para explicitar essas dúvidas, o Acordão socorre-se de duas publicações científicas. A primeira é classificada pelas magistradas como um “abrangente estudo publicado pela Oxford Academic, realizado por um grupo que reúne alguns dos maiores especialistas europeus e mundiais na matéria”. Ora, o abrangente estudo é uma Carta ao Editor (correspondance) de duas páginas, a revista é a Clinical Infectious Diseases (e não a Oxford Academic, que as juízas confundiram com o nome da editora, a Oxford Academic Press) e o autor principal é Didier Raoult, da Universidade de Marselha, um investigador que está com um processo disciplinar na Ordem dos Médicos francesa, na sequência de uma queixa de 500 membros da Sociedade Francesa de Doenças Infeciosas por falsificação de resultados sobre estudos relativos à hidroxicloroquina. O estudo mencionado no Acordão reporta-se a uma correlação entre os valores de Ct do teste realizado num único gene em amostras inoculadas em meio de cultura, com os resultados previamente obtidos com as amostras originais. A leitura que as magistradas fazem dos resultados, que “até ao limite de 25 ciclos, a fiabilidade do teste será de cerca de 70%, com 30 ciclos o grau de fiabilidade desce para 20% e com 35 ciclos o grau de fiabilidade será de 3%”, é completamente errada. A segunda publicação mencionada no Acordão é um comentário (comment) de duas páginas publicado na Lancet Respiratory Medicine, em que a autora principal é uma cardiologista. Aqui são feitas algumas sugestões no sentido de diminuir o número de falsos positivos nos resultados dos testes realizados no Reino Unido e não são levantadas quaisquer dúvidas quanto à fiabilidade dos mesmos.

Não deixa de ser estranho, que de entre as 5692 publicações registadas na base de dados PubMed relativas à utilização da RT-PCR na deteção do SARS-CoV-2 e Covid-19 (acesso a 22/11/2020) tenham aqui sido mencionadas apenas duas, e para além disso mal interpretadas. Esta desinformação científica faz eco da iliteracia negacionista da Covid-19 que enche as redes sociais e que é seguida, entre outros, pelos denominados movimentos pela verdade. Aguarda-se com expectativa a análise que o Plenário do CSM irá fazer deste Acordão.

Agradecimentos: Dr. Mário Cunha, Dra. Carmo Ornelas e Dra. Daniela Cochicho, respetivamente Diretor, ex-Diretora e Investigadora do Laboratório de Virologia do IPO de Lisboa, pela oportunidade que me deram de acompanhar a realização de testes RT-PCR.

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