O mundo em que vivemos, inundado por quantidades assombrosas de dados, de ideias e de promessas, está a mudar a um ritmo nunca antes visto (Yuval Noah Harari). Encontramo-nos, na verdade, perante grandes mudanças que têm vindo a ocorrer, quer no campo político e económico, quer no âmbito da cultura e da própria estrutura global da sociedade; esta situação reveste-se de extrema importância, devido à sua abrangência e à sua problematicidade.

Convergiram na análise deste acontecimento várias correntes de pensamento, vindas, quer da modernidade/iluminismo, quer da pós-modernidade; são de salientar, contudo, na época atual, o grande desenvolvimento científico, o crescimento da técnica (nos séculos XIX-XX) e o enorme impulso que, a partir das últimas décadas do século XX, tiveram as novas tecnologias de base científica, bem como as tentativas de monopólio por parte do Estado, o poder das redes de comunicação social e as “ideologias” do nosso tempo.

A sociedade atual está dominada por uma “racionalidade lógico-instrumental”, orientada para o matematizável, para o calculável, para o imediato e para o pragmático, desvalorizando as humanidades em favor de um mundo economicista, “centrado na tecnologia”. Saliente-se que se trata de uma situação alheada dos fundamentos da civilização ocidental, onde impera um vazio ético, sendo visível a ausência de uma ética situada no horizonte da plenitude humana, que nos convida a relegar para segundo plano o simbólico e tudo aquilo que nos remete para a esfera do sentido e do ser; verifica-se, na sociedade do nosso tempo, um “niilismo existencial”, em que a frustração e a dúvida marcam a perspetiva de mudança dentro da mudança.

Confrontamo-nos, assim, com alterações que afetam o conjunto da dinâmica social e das suas instituições, uma vez que é o próprio ser humano que se encontra comprometido.

É por isso que filósofos, sociólogos e também cientistas, empenhados num projeto de humanização da sociedade, têm vindo a insistir na urgência de uma “busca reflexiva” em torno da vida humana e na necessidade de uma tomada de posição, uma vez que se trata, fundamentalmente, de uma “crise do homem” (Albert Camus); por isso,  “o desafio central da contemporaneidade” é lidar com a “ameaça sobre o futuro da Humanidade” (Edgar Morin), tornando-se, para tal, “necessário o regresso a um mundo mais humanizado” (Václav Klaus).

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Trata-se, efetivamente, de um contexto novo, complexo e difícil, de um “contexto descomandado” (Cerqueira Gonçalves), com o qual são confrontados os responsáveis políticos, os responsáveis sociais e, de um modo especial, os responsáveis pela educação, problema que “não é um problema ao lado de outros problemas, mas o problema” (Manuel Antunes).

Exige-se, por isso, um trabalho de reflexão e uma tomada de posição em torno dos novos desafios que um pensamento crítico levanta à educação, “uma questão de que muito se fala, mas de que pouco se cuida” (Manuel Antunes) e à escola, uma vez que é “impossível compreender a natureza e o funcionamento da instituição escolar fora do horizonte englobante das grandes coordenadas culturais” (Cerqueira Gonçalves).

Fixando-nos nas novas tecnologias, em cuja influência está cada vez mais centrado o funcionamento da sociedade atual, não podendo nem pretendendo ofuscar as potencialidades da sua implantação, tem vindo, contudo (dada a forma como a dimensão técnica da comunicação se tem sobreposto às dimensões humana e social), a ser manifestada grande preocupação com o impacto que elas têm na cultura e na sociedade do tempo presente e com as suas implicações na educação, em geral, e na educação escolar, em particular.

Edgar Morin, perante os avanços científicos e técnicos da inteligência artificial (IA), muito recentemente, salientando que “navegamos num imenso oceano de incertezas”, mostrou-se muito preocupado e deixou um conselho: “Que as pessoas estejam atentas ao inesperado”.

Outros pensadores têm vindo também a afirmar que, nesta “nova era educativa”, com “a inteligência artificial a ditar novos modelos”, a educação está a transformar-se numa tarefa ainda de maior complexidade e dificuldade e que, nesta “nova era de aprendizagem”, “a IA está a influenciar as metodologias de ensino, a experiência de aprendizagem dos alunos e as expectativas dos educadores”. Referem, ainda, que, “sem um verdadeiro teste do seu valor” e “sem uma visão clara das suas consequências”, “muito rapidamente, as tecnologias podem revolucionar a forma como se ensina e se aprende, alinhando em utopias educacionais não validadas que, muitas vezes, não são mais do que fórmulas sofisticadas de marketing”.

Não aceitando qualquer instrumentalização da pessoa, vem sendo criticada a imposição de um modelo de mercado à educação, como se ela constituísse um processo de industrialização ou de mercantilização, transformando a escola numa “empresa educativa” onde domina a crença nas capacidades reguladoras do mercado, na concorrência e na competitividade.

Vários estudos têm já evidenciado “uma ligação preocupante entre a introdução intensiva da tecnologia e o declínio do desempenho académico”. Refira-se um estudo da Harvard Business School, recentemente publicado, onde um conjunto de investigadores analisou o impacto que as ferramentas da IA, hoje disponíveis, podem ter no trabalho e na produtividade. Têm vindo, ainda, a ser denunciadas lacunas importantes nos métodos e nos instrumentos utilizados, bem como a sua sobreposição aos princípios tradicionais de aprendizagem, nos quais o professor era considerado como uma figura principal e um mediador fundamental na construção das estruturas de aprendizagem dos seus alunos, assistindo-se a “uma diminuição da intervenção da mediação humana na relação pedagógica ou, até, à sua substituição por uma mediação mecânica”. Alguns países têm-se mostrado cautelosos e preocupados com tal situação. A Suécia, por exemplo, já decidiu colocar um travão na utilização dos écrans e repensar a utilização da tecnologia na sala de aula. Os professores estão, inclusive, a regressar aos manuais em papel.

Importa, de facto, refletir sobre a atual “devoção tecnológica”, designadamente sobre a chamada “escola virtual”, dadas as suas múltiplas, significativas e preocupantes limitações, uma vez que está em causa o saber sobre a educação (um saber comprometido com o desenvolvimento humano, individualmente e em sociedade, um saber praxiológico, crítico, reflexivo e ético) e também a própria escola, relativamente às suas funções e às suas práticas, ao seu espaço identitário e inter-relacional.

Com “novos espaços e diferentes formas de ação pedagógica que afetam inevitavelmente o perfil formativo do professor e as possibilidades do próprio processo formativo” e com lacunas importantes que atingem, negativamente, a noção e o processo de aprendizagem, bem como aquilo que na escola é fundamental, isto é, a relação pedagógica, está em questão a própria escola, a sua sobrevivência e o seu futuro, “O fim da escola” (Gilberto Dimenstein).

Exige-se sabedoria, responsabilidade e ação para, pensando nos seus valores, “Que valores para a escola do século XXI” (Guillot,G.), encontrar  resposta para os enormes desafios que a escola enfrenta nesta “Sociedade do cansaço” (Byung-Chul Han).

No exercício da sua específica autonomia, é necessário apostar numa escola onde, “tomando consciência da importância fundamental do capital humano”, seja valorizada a função insubstituível da pessoa do professor, “não podendo ser substituído por máquinas”, bem como a pessoa singular do aluno, não se afastando da sua centralidade para aspetos mais técnicos, construindo uma escola formadora de autênticos cidadãos onde, em colaboração com a família, funcione uma “pedagogia de proximidade”, num intercâmbio de aprendizagens e “com lugar para o ensino”.

Considerando que “os melhores professores vão além da lição” e que “aquilo que comunicam são eles próprios e o melhor que têm em si” (Robert Louis Stevenson), torna-se urgente a afirmação de uma escola onde seja essencial ao professor o desenvolvimento de capacidades que envolvam o seu próprio desenvolvimento pessoal, com competências para uma prática docente cada vez mais humanizada em relação ao saber e à cultura. Teríamos, assim, escolas como “oficinas de humanidade”, não no sentido de um “narcisismo antropocêntrico” (Cerqueira Gonçalves), mas incluindo a dimensão comunitária do ser humano enquanto pessoa, privilegiando “o capital relacional” humano em ordem a um autêntico progresso civilizacional. Temos, na verdade, de encontrar, neste nosso tempo, o caminho para uma comunicação plenamente humana e não apenas tecnicamente rica.

Sendo a educação “reflexo e projeto de uma cultura” (Manuel Antunes), “articulando tradição e inovação”, valorizando a importância da ligação entre o saber e a vida, procurando ser fiel à dimensão integral do ser humano, e “sendo óbvia a articulação entre a escola e a sociedade” (Cerqueira Gonçalves), a instituição escolar será “fermento activo na cultura do tempo presente” (Cassiano Reimão).

Dinamizando a construção de “uma civilização onde o homem encontre o sentido para a sua existência” e “acredite, esperançosamente, no futuro”, num mundo marcado por uma crescente ausência coletiva de esperança, a escola desempenhará um papel fundamental na resposta à atual crise de sentido.

Encontramo-nos, de facto, perante um dos grandes desafios lançados, hoje, à escola: utilizar as tecnologias ao serviço de uma educação integral da pessoa e de um projeto de humanização da sociedade, de modo a instituir uma escola continuadora e promotora da memória de um povo, da cultura, em que a pessoa humana, no “horizonte de plenitude do seu ser”, seja considerada fundamental e onde a comunicação esteja dirigida para a realização de uma vida com sentido.