Estes tempos de ascensão da pandemia são os tempos de ascensão da Tecnocracia. É certo que tivemos no passado períodos em que alguns, na transposição das palavras de Marx, se arrogavam como cientificamente comunistas e proclamavam governar-se pela aplicação da Ciência à Política. Mas era fácil distinguir o que era propaganda do que acabava em meras profissões de fé.

Em contrapartida, tivemos também períodos em que não foi a Ciência a tomar conta dos estados e dos poderes instituídos, mas sim o contrário. Foram estes que procuraram moldar o que era a Ciência à sua imagem e ditar as suas regras, num processo que se poderia caracterizar como uma espécie de fusão por incorporação e que nos traz à triste memória o processo de Galileu, entre outros.

Mas foi preciso a chegada desta pandemia para finalmente assistirmos à originalidade de ver reconhecida a Ciência como a fonte de justificação da intervenção pública e do exercício do Poder, interferindo nos seus mais diversos níveis desde a mera operacionalização das funções do estado até aos seus próprios fundamentos constitucionais, permitindo em seu nome e à sua luz a reinterpretação e limitação de Direitos, Liberdades e Garantias.

Estes tempos de ascensão da Tecnocracia são também os tempos da queda da Ciência.

Uma das principais vítimas a lamentar desta pandemia foi essa mesma Ciência, com destaque para a forma de produção do conhecimento científico e sua divulgação, e com as óbvias consequências ao nível da sua aceitação pela comunidade em geral. Uma vítima a uma escala que qualificaria de retrocesso civilizacional como não tenho memória de outro do género.

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Herdámos do Renascimento e da Idade Contemporânea um notável avanço em termos de metodologia científica. Foi com os epistemologistas deste período, bem como com os cientistas e os novos ramos da Ciência que se estabeleceram na época (como a Microbiologia) que, com a companhia dos grandes avanços na Tecnologia e na metodologia, se concluiu que a boa Ciência ficava bem para além daquilo que era descoberto: ficava em grande parte caucionada pela maneira como era descoberto.

Compreendeu-se também, de uma forma que arrebatou de vez o pensamento científico do pensamento mágico e da crença, que o cepticismo e a dúvida metódica são posturas essenciais para a Ciência e que devem fazer parte do seu continuum tanto de descoberta como de análise retrospectiva dos seus resultados. De resto, reconheceu-se que aquela dúvida fazia sentido para além de um mero momento de análise a posteriori, e ganhava por ser omnipresente em todos os passos do método científico e na análise das teorias científicas que emanavam das hipóteses que se lhe submetiam.

Conjugados o cepticismo e esta dúvida metódica com os desenvolvimentos do século passado no sentido de reconhecer a confirmação, bem como a refutação e a invalidação empíricos como caminhos essenciais da Ciência, estabeleceu-se desta forma a crítica – por pares e por leigos – como um ingrediente essencial para a respeitabilidade e consideração pela sociedade do papel da Ciência, muito para além de um juízo de mera eficiência e eficácia desta por si só.

Estes desenvolvimentos e maneiras de proceder foram imprescindíveis para entretanto se derrubarem algumas teorias e sistemas que eram vistos como pilares da Ciência. Foi o que sucedeu quando se constatou as limitações do sistema de axiomas da geometria euclidiana quando foi preciso pensar fenómenos que se viriam a descobrir como existindo para lá desses limites; foi o que sucedeu quando – muitas vezes com tanta e tão acesa discussão entre vultos maiores da Ciência – se fez ultrapassar a mecânica clássica pela mecânica quântica quando a primeira abria as suas brechas. As mesmas bases procedimentais foram essenciais para Pasteur e para Koch (precursores da vacinação e da Bacteriologia) estabelecerem a teoria microbiana das doenças – contrariando todo o consenso existente anterior – ou para contraporem as vacinas que desenvolveram às práticas que as antecederam.

Todo este edifício científico foi severamente danificado pelo que tem vindo a suceder, por duas gerações de “peritos” que, aparentemente, parecem desejar regressar a lógicas distantes de afirmação da Ciência como dogma, proclamado para além de qualquer necessidade ou de obrigação de demonstração empírica, refutabilidade ou discussão. O dogma passou a ser “a verdade que temos”, opaca, difusa e volátil, proclamada e deliberada por petit comité.

Entretanto, todo e qualquer discurso que obstasse a esse facto aparentemente consumado e pretendesse instigar esses arautos da ciência institucionalizada a esse cepticismo, ou pelo menos sujeitá-los a um olhar crítico no sentido de validar, refutar as suas conclusões ou lançar uma dúvida razoável sobre os ditames da tecnocracia vigente que ecoavam, passou a ser qualificado de “negacionista”, “acientífico”, “desinformação” ou “crença”.

Senão vejamos exemplos do caricato a que chegámos.

A imunidade de grupo à infecção por SARS-CoV-2 por inoculação vacinal e por imunização natural já foi anunciada para as vacinas disponíveis e aprovadas pelos organismos tutelares como dependendo da vacinação de entre 70 e 95% da população, com valores crescentes à medida que os programas de vacinação avançavam na concretização; até que se convergiu para a sua impossibilidade devido às vacinas não conferirem imunidade esterilizadora e portanto permitirem a infecção, só (até ao momento) sendo confirmados efeitos ao nível da gravidade da infecção.

O uso de máscara já foi descartado por proporcionar uma falsa sensação de segurança, já foi (meramente) recomendado em espaços interiores, em espaços exteriores e também já se recomendou o seu uso obrigatório para ambas as situações.

A infecção já foi por via de projecção de partículas contaminadas, por aerossóis, e as superfícies já se mantiveram contaminadas e passíveis de contaminar durante desde minutos até horas. Em transporte aéreo até já nos foi assegurado que não é necessário distanciamento social porque as pessoas estão viradas para a frente.

Foram atribuídas licenças especiais de entrada no mercado a vacinas, supostamente com base em critérios científicos sustentados na apresentação de ensaios clínicos prestando garantias de eficácia e segurança. Depois de essas licenças terem sido conferidas, essas vacinas já deixaram de ser capazes de conferir imunidade de grupo porque afinal não eliminavam a possibilidade de infecção; duas delas já deixaram ou estão em vias de deixar na prática de ser administradas por risco de efeitos secundários e/ou por baixa eficácia, tendo a maioria do seu acervo sido já redireccionado para destinos onde os tomadores não façam tantas perguntas; as restantes, também rotuladas há meros meses como plenamente eficazes e seguras com uma vacinação feita em duas doses, já vão nalguns países no dobro das inoculações que eram indicadas à data das autorizações.

As vacinas já foram o caminho mais rápido para o aligeirar das restrições devidas à pandemia, mas atingido o patamar de mais de 85% da população vacinada acabaram por passar tão somente a ser – por via da obrigatoriedade da apresentação de comprovativo de vacinação – adicionadas às medidas que previamente existiam.

Tudo isto são exemplos do caminho que se trilhou até este ponto. Exemplos do que foi vendido como pensamento científico à data da sua proclamação e do género de verdades científicas em relação às quais parece que não temos mesmo outra alternativa que não seja a sua aceitação acrítica, e que requerem uma dose substancial de crença para alguma vez se julgar que foram Ciência.

Entretanto, com a ascendência da Tecnocracia, os cientistas deixam-se arvorar em popstars.

Se no passado da Ciência não faltam exemplos de cientistas que, começando como tal, acabaram por acumular esse papel com o de vedetas e estrelas do firmamento público com um cunho mais ou menos pop, ou até mesmo de autênticos heróis nacionais, no presente caso assistimos a um novo fenómeno, talvez inspirado nos tempos de fama e notoriedade cada vez mais efémera e fugaz – mas meteórica – que vivemos por via dos reality-shows, dos influencers e das personagens públicas: o fenómeno do cientista por osmose.

Desde médicos e enfermeiros com carreira clínica, passando por epidemiologistas, geógrafos, matemáticos, e biólogos, no seguimento do seu contacto profissional com a pandemia ou dos comités em que lograram participar, ou até dos meros convites dos media para engrossar talvez a mais profícua carreira de português, a de tudólogo e comentadeiro, muitos foram os que se ofereceram de sopetão para pegar no estandarte que lhes era apresentado de portadores da verdade e arautos da ciência. Todos vozes incontraditáveis e indesmentíveis que acabaram subitamente transformados em policy-makers deslumbrados com as luzes da ribalta do seu descoberto papel.

Entretanto, somam-se também as informações vindas a público de que muitos destes novos protagonistas acumulam há bom tempo o seu protagonismo público com substanciais contratos de consultoria de espectro alargado e pouco definido com a indústria farmacêutica, levando-nos a crer que todo este processo não apenas vitimou a solidez metodológica da Ciência: também sacrificou a Ética que a deveria guiar e consigo manter-se de mão dada.

Veremos no que vai culminar esta Tecnocracia. Poderá ser na constatação dos cientistas (há esperança que ainda existam) de que esta ruína tem que ser detida, voltando a credibilizar a Ciência aos olhos dos seus pares e dos demais. Mas, com maior probabilidade, será no esgotar da utilidade da farsa em curso aos olhos dos detentores tradicionais do Poder: quando estes tiveram a confiança de que atingiram os fins e de que não precisam continuar a sustentar os meios, poderão por fim deixar regressar os poetas do karaoke à sua prática (eventualmente não tão sexy como a exercida debaixo dos holofotes) dando por terminada a sua missão.