Difícil é descrever a sensação de levantar voo e deixar para trás uma ditadura. Avião de rodas no ar, respira-se de alívio. Mulheres destapam as cabeças. Passageiros pedem vinho e cerveja. Lá no chão, fica um regime autocrático, religioso, e ultra-conservador. Lá em baixo, é preciso pensar no que se diz, no que se ouve e andar sempre com um olhar por cima do ombro. Foram 18 dias em trabalho. Imagine-se 40 anos e sem escolha! Imagino apenas, com os relatos de tanta e tanta gente, o que foi o respirar de alívio quando se soube a 25 de Abril de 1974: acabou!
Fui criado a poemas Sophia de Melo Breyner, Manuel Alegre, Ary dos Santos, nas aulas de português. A ouvir Zeca Afonso (Zeca, antes de ser José) nas aulas de história. O 25 de Abril foi a coisa mais linda que acontecera a este pequeno país: Liberdade e Progresso! Com os colegas de escola, viemos em excursão celebrar os 25 anos de Abril a Lisboa! Excursões das aldeias, autocarros cheios de miúdos: a representar a liberdade, a escolha, a democracia. O futuro!
De volta à aldeia, entre camponeses sujos de terra e operários cobertos de óleos – sangue do meu sangue maioria votante de centro-esquerda, note-se – a conversa era outra: “Ó rapaz, mas isso serviu de alguma coisa?”; “Nós nem demos conta do que se tinha passado. Vieram aí uns fulanos falar e falar do comunismo, mas ninguém lhes ligou.”; “Isso foi bonito lá par os de Lisboa, aqui continuou tudo na mesma”. Novamente, que sabiam aqueles campónios ignorantes todos sujos, pensava o meu eu da infância. Que sabem eles assim todos sujos, quando na televisão as pessoas bem vestidas dizem o contrário? Sempre os mesmos, estes campónios a dizer mal de tudo e todos!
25 anos volvidos, voltei a Lisboa para a mesma celebração. 50 anos! Meio século! Uma democracia adulta e robusta! O miúdo cresceu. Abril envelheceu. Ficou estranho, diferente daquele que era para ter sido. No meio da maralha, a pergunta levanta-se: o que há assim tanto para celebrar?
Sem querer soar a apologista de ditaduras, os valores da Liberdade individual, indicador da prosperidade de todos, é um valor inegociável! A Liberdade de escrever estas palavras é um privilégio a que muita gente continua sem acesso por esse mundo fora. Deve ser respeitado, mantido e promovido.
Voltando ao tema: O nosso Abril, o abril à portuguesa. Vangloriamo-nos do dia, do fim de algo e o começo de outro algo. Melhor, mais moderno, mais progressista. No meio da Avenida da Liberdade, questiono que mais do alcançado, foi o que deixou tanto a desejar. O desejo de dar a volta a isto tudo e alcançarmos, finalmente, o progresso e o desenvolvimento para todos. Tornar Portugal um país rico. Um país moderno. Um país de modestas dimensões, mas com capacidade para muito. Mas ao saber da História recente Europeia, é difícil esconder um certo sabor agridoce de inveja: o nosso Abril está aquém do Novembro Espanhol, do Julho Polaco, do Novembro Checoslovaco, do Dezembro Romeno.
A Liberdade que nos permitiria discutir, trabalhar e desenvolver para chegar longe. Muito mais longe. Mas (eterno inusitado, rezingão e resistente “mas”) o país de Abril ficou aquém em tanta coisa: continuamos a ser dos que menos recicla1; que menos lê2; os que menos praticam desporto na Europa3; os que menos estudam dos países da OCDE4; que mais continuam a destruir as suas florestas5. CEOs de grupos conhecidos a receberem mais de 288 vezes (!) que a média dos seus assalariados. Nepotismo ao mais alto nível institucional. Uma economia e uma sociedade de baixíssima competitividade. Justiça que deixa à solta o ladrão de milhões, para prender o ladrão de tostões. Alcançou-se muito, é inegável. Mas os “Abris” dos outros alcançaram mais.
Sem jamais negar o bom que Abril trouxe ao país, é-me difícil festejar, celebrar efusivamente aquilo que ficou por cumprir. Com promessas de liberdade e de “mudarem as coisas”, os “netos de Abril” herdaram um país politicamente instável (24 governos em 50 anos) e economicamente inseguro (três intervenções do FMI em menos de 40 anos). Um país que vê o seu Interior a envelhecer e desaparecer; um aumento do fosso entre Litoral e Interior; manutenção ou aceleração da fuga de jovens para o estrangeiro.
Por cá, alguns – envergando sinais de apoio a regimes ditatoriais “exóticos” – atiram de chofre o “Fátima, Fado e Futebol” como a raiz de todos os males deste pedaço de terra. Sorte a deles que mais têm. Do outro lado da barricada, na dos muitos pobres, depois de 50 anos de Abril, continua a haver muito pouco para se agarrar. Sob outra ideologia, há um outro regime que os oprime, mantém na pobreza e lhes rouba direitos (o mais atual: direito à habitação). Assim, ainda bem que temos os “Três Éfes”! Que temos pão e circo para nos agarrar. Ainda bem que temos um Cristiano Ronaldo. Ainda bem que temos trovadores – verdadeiramente livres – para nos alegrar e ajudar com a sua música, a puxar isto para diante. Ainda bem que muitos de nós mantêm uma fé sobrenatural e inabalável de que o país de Abril há-de ir a algum lado, que ainda se vai cumprir e que vai ter um Abril digno desse nome.
Em 50 anos mudou muita coisa! Mas (o chato “mas”), de forma crua, a besta de carga é a mesma, a carroça e a carga também. O que mudou foi a mão que segura o chicote e a cor do jugo. E fica assim Abril por cumprir, quando outros e mais tardios “abris” se cumpriram tão melhor.