A brancura da porta vai-se paulatinamente escapulindo do meu campo de visão à medida que se entreabre, revelando a silhueta do senhor Menezes que se insinua e esculpe ante os meus olhos.

A sua figura longilínea e depurada de qualquer curva pelo estado consumptivo imposto pela neoplasia move-se vagarosamente. O perfil do senhor Menezes (nome fictício) amplia-se e define-se à velocidade proporcionada pelas parcas reservas energéticas que o cancro deixa, ainda, intactas. Traz, pendendo da mão direita, um saco largo, de formato quadrangular.

Herdei, com enlevo e carinho, o senhor Menezes como meu doente. Homem de um porte intelectual graúdo e com uma peculiar propensão pela filatelia e colecionismo de tesouros vários. Partilha comigo o gosto por livrarias, mais do que por bibliotecas. Coleciona, segundo me confidenciou na última consulta, cartões de visita de livrarias que cataloga e organiza em diferentes pastas com enlevo de curador e que acondiciona em micas que manuseia com dedo de ourives.

Na última consulta preenchemos o espaço sucedâneo à comunicação de nova progressão de doença e de nova falência de esquema terapêutico com a partilha destes prazeres de que comungamos, o de calcorrear livrarias e o de coligir e inventariar itens múltiplos. Confessou-me que colecta como modo de extensão da sua identidade, como método de deixar rastro, como forma de deixar um pouco de si neste mundo após a sua partida biológica. Soprou-me a promessa de me trazer alguns dos mais belos cartões de que dispõe na consulta subsequente.

Hoje mostra-me com ternura paternal artefactos (quase arqueológicos) de visitas prévias à Green Apple Books, à Goldsboro Books e à La Libreria de Ávila. Alguns dos cartões emanam ainda o distinto aroma da lignina, essência que perfuma páginas de tomos, volumes e fascículos. Cada cartão encerra em si memória e imagem.

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Recomendo-lhe a leitura da extraordinária obra de Jorge Carrión, apropriadamente intitulada “Livrarias”. Também isto é terapêutico, também isto é Medicina.

Esta é seguramente uma das últimas ocasiões em que vejo o senhor Menezes em consulta. Não consigo, com as armas de que disponho, conter o inexorável avanço da doença oncológica do meu doente. É para um oncologista uma derrota, independentemente do tempo e da qualidade de vida já ofertados. Sentimo-la sempre como tal.

O senhor Menezes foi também o último doente que vi hoje.

O serviço está agora desabitado, abraçado pela quietude e envolvido pela noite que se espraia languidamente sobre a cidade.

Lisboa cintila através da espessura do vidro das janelas.

Deparei-me esta manhã com o artigo relativo ao caso do meu avô paterno, outrora doente oncológico deste mesmo serviço em que me insiro enquanto proto-oncologista. Ocupo agora o lado de cá da secretária deste mesmo gabinete onde tantas vezes entrei com o meu avô enquanto “familiar e acompanhante do doente”. O caso está superiormente escrito e ilustrado com fotografias dos grumos que povoavam a face palmar das mãos do meu avô. Os grumos são descritos como metástases cutâneas intravasculares de um angiossarcoma epitelióide. Angiossarcoma esse que se encontrava na aurícula esquerda, portanto, no coração. Reconheço os contornos e sulcos das mãos do meu avô e recordo-o a ele através desta imagem pixelizada, cristalizada nas páginas de uma revista médica britânica. Aqui está o seu cartão de visita, meu privilegiado meio de transporte ao passado, para a eternidade terrena avô. Sem aroma de lignina, mas pleno de memória e riqueza pictórica.

Suspiro e pouso as mãos sobre o tampo da secretária. Revejo mentalmente as últimas doze horas.

De certo modo, também nos temos dedicado a produzir cartões de visita que literalmente cristalizamos e enviamos para o futuro. Preservamos, refrigerando sangue e fragmentos de diferentes tipos de tecido com auxílio de uma equipa extraordinariamente competente, azoto líquido em profusão e criotubos espaçosos, amostras provenientes de biópsias, cirurgias e simples colheitas de sangue periférico no Biobanco do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes. Tal como o livreiro elege a espessura e a cremosidade do papel e compõe o cartão com elementos cromáticos e simbólicos específicos também nós procuramos identificar material de superior qualidade, garantir a excelência de condições para a sua preservação e proporcionar a retenção da máxima integridade biológica do sangue e tecidos colhidos. Tal como o senhor Menezes cataloga cartões de visita com enlevo de curador e os manuseia com dedo de ourives, também nós rotulamos e organizamos fisicamente nos criotubos e informaticamente em sistema próprio as amostras que com delicadeza de pianista manipulamos. Aqui preparamos e coligimos os cartões de visita, a partir de matéria-prima gentilmente cedida por outrem, de diferentes tipos de cancro. Há nisto tanto de livreiro como de senhor Menezes.

Um biobanco é por definição uma colecção de material biológico criada para efeitos de investigação no presente e, fundamentalmente, no futuro. É sempre uma construção que se projecta para uma realidade vindoura. A jornada de Alfred Cort Haddon, etnologista britânico, na década de 1920 por diferentes latitudes encapsula o conceito essencial da construção e desenvolvimento de um biobanco. Haddon obteve e armazenou material biológico dos mais diversos tipos. A preservação do material por si obtido permitiu, várias décadas após o armazenamento do mesmo, por exemplo sequenciar o genoma dos aborígenes a partir de uma amostra de cabelo. Colecta-se para acender perpetuamente o rastilho da descoberta científica, criando rastro no presente e no futuro, eternizando todos aqueles que cedem os seus tecidos biológicos e alimentam a chama do conhecimento. Estende- se, indirectamente, a identidade de todos os que na construção de um biobanco assumem papel principal (cedendo tecidos) projectando-a num plano futuro e num contexto ulterior em que a amostra hoje colhida poderá moldar o horizonte terapêutico para determinada condição daqui a cem anos. Hoje colhemos no bloco operatório nova amostra para a colecção de sarcomas do Biobanco do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes. Apreciei a peça operatória composta por um enovelado de fibras musculares e algumas áreas amareladas de brilho nacarado. Ver cancro in loco impõe respeito. Observar a olho nu um sarcoma impõe respeito. A amostra foi inicialmente processada com critério e rigor no serviço de Anatomia Patológica e posteriormente devidamente acondicionada e preservada nos criotubos do biobanco.

Quão refrescante, literal e figurativamente, seria poder descerrar um criotubo, retirar um fragmento de amostra do angiossarcoma epitelióide cardíaco do meu avô, sentar-me à bancada e nele trabalhar. Ter entre os meus dedos enluvados um pouco do meu avô, do seu cancro (sempre tão seu, sempre tão nosso), e, ao microscópio, soprar-lhe figurativamente vida dando novos horizontes à compreensão dos mecanismos de desenvolvimento e progressão deste tipo de cancro. Quem me dera avô poder estender-lhe a identidade e projectá-lo num futuro por si nunca imaginado, assumindo papel principal na optimização do tratamento de um seu semelhante, tantos anos depois da sua partida biológica.

Não sei em que compartimento repousa o fragmento do lipossarcoma do senhor Menezes, mas sei que ali brilha e brilhará o seu cartão de visita (sem a nívea da lignina), a sua memória e a sua imagem. Prometemos cuidar dele com enlevo de curador e manuseá-lo com dedo de ourives.

Esboço um sorriso. Creio estar sozinho no serviço.

Quem sabe se daqui a uns bons anos o filho ou o neto do doente hoje operado não assume também posição deste lado da barricada. Que prazer sentirá (sentiremos) ao abrir o criotubo, cápsula do tempo, e ao segurar entre os dedos parte do leiomiossarcoma do pai ou do avô.

Lisboa reluz ainda mais intensamente alguns andares abaixo do gabinete em que me encontro.

Revejo a lista de doentes que consultarei amanhã. Preparo as consultas, dedicando especial atenção aos doentes que serão pela primeira vez avaliados e observados no nosso serviço de Oncologia. O método, sempre o método.

Arrumo as minhas folhas e apontamentos relativamente aos casos de diferentes doentes com ternura paternal. São os meus artefactos do quotidiano.

A brancura da porta vai-se paulatinamente aproximando do meu campo de visão à medida que a vou entreabrindo, revelando o escuro do corredor em que mergulho. Ao fundo uma luz. Sempre uma luz. E o aroma a lignina.

Lisboa, 14 de Novembro de 2021