Ainda cega pela ofuscante luz da inclusividade que resplandeceu na abertura dos Jogos Olímpicos de Paris, não vi em tempo útil a vossa mais recente campanha, «Vamos falar de menstruação», nem tomei conhecimento da polémica que a acompanha, a saber, o uso da designação «pessoas que menstruam». Assim que as escamas me caíram dos olhos, procurei inteirar-me, para poder tomar partido.

Acima de tudo, devemos pautar-nos pelo rigor; e este exige o contacto com a fonte. Para poder tomar partido na polémica, fui, pois, directamente à vossa página. A seguir ao título, «“Vamos falar de menstruação?”: DGS lança questionário», pude ler: «A menstruação é um processo fisiológico com impacto na saúde e bem-estar das pessoas que menstruam, ao longo do ciclo de vida – antes da menarca e até após a menopausa». Verifiquei que a expressão vilipendiada nas redes sociais, pessoas que menstruam, apenas consta nestas primeiras duas linhas.

Saúdo a vossa intenção de procurar uma terminologia que seja verdadeiramente exata. Friso: verdadeiramente. A ciência – e as Ciências da Saúde não são exceção – está, por definição, comprometida com a verdade; mesmo que a não atinja, movendo-se pelos mares da incerteza e da ilusão, tem-na sempre como farol. A corrente aristotélico-tomista definiu a verdade como a adequação do intelecto às coisas (adequatio intellectus ad rem); dito de outro modo: a nossa inteligência atinge a verdade quando o nosso juízo corresponde à realidade tal como ela é. A capacidade de o nosso intelecto lograr tal correspondência tem sido objeto de contestação; todavia, esta definição de verdade não é contestável em si mesma. Intencionalmente ou não, a DGS procurou-a. O vosso arrojo é louvável. No entanto, ficou aquém dos nobres propósitos. É preciso escavar mais fundo para atingir a natureza última das coisas.

Contra a berraria dos ultra-conservadores, retrógrados e preconceituosos, de horizontes penosamente estreitos, há que reconhecer com serenidade: a exclusão do termo mulher é acertada. Como podemos nós saber se uma pessoa que menstrua se identifica como mulher, ou como homem ou como inter-sexo? Como podemos nós saber se a identidade de género de uma pessoa que menstrua se mantém inalterada, até mesmo no decurso de um mesmo ciclo menstrual? Não é possível afirmar com rigor que uma pessoa que menstrua é uma mulher.

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Outrossim, o mesmo se aplica ao termo pessoa. Eis o equívoco da DGS! A coerência é um dever científico, não um privilégio social. Do mesmo modo que não podemos deduzir que uma fêmea humana se identifica como mulher, não podemos inferir que se reconheça como pessoa. Quem sou eu para dizer ao meu próximo que ele é meu semelhante?

Apelo à DGS para que ponha a mão na consciência: a própria inferência de que alguém que menstrua se identifica como pessoa é abusiva e lacerante para toda uma minoria. E, pior: escamoteia a realidade, afastando-se da verdade última das coisas. A realidade é bem mais complexa.

Sim, uma fêmea humana pode identificar-se como alce macho, como sardinha intersexo ou como cegonha transgénero. Mas há mais. Não podemos ignorar os recentes avanços na ciência. Seria desonesto. Ora as Ciências Sociais têm estudado a fundo a evolução da liberdade individual no processo de descoberta da identidade e apresentam-nos quem, na expressão livre da sua autodeterminação, se identifica como cyborg ou como boneco. Temos já casos documentados no nosso pequeno país! Vamos afastar deles o nosso rosto ou cuspir-lhes em cima?

Em suma: em defesa da verdade e dos direitos e liberdades das minorias, o termo pessoa deve ser banido. Proponho à DGS a substituição de pessoa por ente. Afigura-se-me que apenas este termo é suficientemente amplo e inclusivo. Abrange todo um espectro de realidades, desde ideias a coisas, seres vivos e não vivos. O unicórnio, a sereia e o hipogrifo encontram aqui o seu lugar.  Por outra parte, a forma é sumamente adequada. Ora veja-se: ente deriva de ens, Particípio Presente do verbo esse (ser ou estar). A expressão «um ente» significa literalmente «sendo» ou «estando». Assume um carácter fluido e mutável, subtraindo-se ao fixismo, démodé. É, pois, a escolha acertada para a aurora destes novos tempos.