Caríssimo escriturário do Céu (ou lá como é que se chama a tua profissão aí em cima),

Espero que esta carta te encontre bem.

Não sei quanto é que te pagam à hora, se é que te pagam de todo, visto que talvez estares aí seja recompensa mais que suficiente pelo teu trabalho. De qualquer maneira, escrevo-te para ter a certeza de que tens feito exatamente isso, o teu trabalho. Entregar as cartas a todos os que estão aí contigo, na tranquilidade da eternidade.

A morte é uma inevitabilidade, todos sabemos. Àqueles que ficam resta apenas (‘apenas’ este que é enorme) a memória e o amor que deram e receberam durante muito tempo, ou pouco tempo, enfim… o tempo que houve. Esse amor será sempre impossível de transpor em palavras. Não me atrevo a tentar. Só que quando Deus pensou a morte, ou melhor, quando a morte pensou em nós, mal sabia que nos dava um dom e uma capacidade que não sabíamos ter, a de pôr em palavras verdadeiras odes de amor a quem tanto nos marcou.

Em vinte e dois anos tive a sorte, dentro do azar, de ler autênticas declarações e poemas daqueles que ficam para aqueles que foram: de filhos para pais, de pais para filhos, de netos para avós, de irmãos para irmãos. Com tristeza, alegria, memórias, gritos de injustiça, desejos, especulações, agradecimentos. Parece estranho, nunca a escrita é tão oxigénio como aquando da morte.

Isto tudo para te dizer, caríssimo escriturário, que não tens noção da importância do teu trabalho. É talvez o mais importante de todos. E por isso é bom que o estejas a realizar com aprumo. É bom que cada uma dessas cartas, cheias de vida em relação à morte, estejam a chegar a todos os remetentes que nelas vêm inscritos. Que cada um deles as tenha recebido e as tenha lido. Porque sem essa entrega resta-nos o vazio da nossa existência sem a existência do outro. Ficamos sozinhos para sempre. Sem um adeus ou um obrigado. Sem um “vai à frente que eu prometo que vou atrás”. Nessa entrega repousa o conforto possível daqueles que cá ficaram. Na certeza de que as suas palavras foram lidas e relidas vezes sem conta, de fio-a-pavio. De que quem aí está sabe a saudade que deixou. Sabe que foi proporcionalmente tão amado como amou.

Por favor não cometas a injustiça de não as entregar. Podem parecer para ti meras palavras à solta numa folha de papel. Mas prometo: para nós, meros saudosistas e pessoas de luto, são muito mais que isso. É a nossa forma de perpetuar um amor que já não é presencial. Que se quer vivo, mesmo depois da morte.

Por isso, é bom que estejas a ser diligente. Não me obrigues a escrever uma carta à tua entidade patronal. Olha que o faço!

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