Nascidos no imediato pós-Segunda Guerra, miúdos nos anos 50, o cinema foi muito importante para nós.
Tínhamos começado a descobrir e a imaginar o mundo pela leitura, as palavras mágicas que serviam de guião às histórias aos quadradinhos do Mosquito, do Mundo de Aventuras, do Cavaleiro Andante; e tínhamos passado para os Salgari, das Edições Romano Torres, onde um italiano que nunca saíra de Itália nos levava do Polo Norte para a Malásia, do Corsário Negro para o Sandokan. Também nas Edições Romano Torres, lemos a colecção de Capa e Espada, histórias de heróis dos tempos onde tínhamos chegado com Os Três Mosqueteiros (que eram quatro…) do Dumas; heróis como os das “guerras religiosas” do Ponson du Terrail, dos Quatro Cavaleiros da Noite à Vitória do Rei Henrique, ou o Lagardère, de Paul Féval, nos princípios da Regência no século XVIII.
Isto antes de entrarmos na literatura “a sério” e no seu encanto, que Scott Fitzgerald descreveu como o encanto de descobrir que coisas que imaginamos e sentimos são, afinal, universais e que não estamos sós na nossa imaginação. A magia da leitura é também essa – a descoberta de mundos atrás de mundos, como um jogo de imagens de lanterna mágica, em que nos vamos desdobrando até ao infinito, sempre iguais, sempre diferentes.
Mas ao lado dos livros, a chegada ao mundo da imaginação vinha do cinema, das imagens que os “caçadores de imagens” juntavam para contar uma história – às vezes até as histórias que já tínhamos lido nos livros.
Quando as luzes se apagavam
Nos anos 50 e 60, quando comecei a “ir ao cinema”, o cinema era um ritual, com a sala escura e solene dos grandes cinemas do Porto e de Lisboa – o Batalha, o Rivoli, o S. João, o S. Jorge, o Império, o Tivoli – ou aqueles mais modestos e populares, com sessões duplas – o Carlos Alberto, o Terço, o Imperial, o Liz, o Bélgica. A sessão começava com as “Actualidades”, francesas, espanholas ou portuguesas; seguiam-se os desenhos animados, o intervalo e os trailers das fitas a estrear brevemente. Tudo regulado por uns toques solenes que nos chamavam para a sala escura.
E quando as luzes se apagavam, podíamos ser Ben-Hur – Charlton Heston – o remador a naufragar e a salvar o Jack Hawkins, o cônsul romano Quintus Arrius, que depois o vai proteger e adoptar; e podíamos, sempre com o mesmo Ben-Hur, ir na quadriga bater o Messala – Stephen Boyd; ou ainda ter aquele sentimento de maravilha de nos cruzarmos com o próprio Cristo no meio dos leprosos. Ficaram famosas as epopeias judaico-cristãs de Hollywood, desde o Sinal da Cruz, de Cecil B. DeMille, ao QuoVadis, à Túnica e ao Rei dos Reis. E depois Roma e o Império Romano, do Spartacus, de Stanley Kubrick, à fabulosa Cleópatra, de Joseph Leo Mankiewicz, que abria com o desfile triunfal de César em Roma, desfile que não durava muito nem pouco, durava o tempo certo; e a cena inesquecível da Cleopatra – Elisabeth Taylor – a sair de um tapete desenrolado aos pés de César – Rex Harrison.
Mas também podíamos viver com o coronel T. E. Lawrence, recriado por David Lean e personificado por Peter O’Toole, ou cavalgar por outros desertos com os cowboys dos Westerns – com Gary Cooper e Burt Lancaster, em Vera Cruz, ou com John Wayne, em filmes do John Ford, como She Wore a Yellow Ribbon.
Como entrámos na literatura “séria”, também entrámos no cinema “sério” – no Bergman do Sétimo Selo e dos Morangos Silvestres, que pela primeira vez me pôs a mim, cristão pré-conciliar, o problema de um mundo sem Deus; ou os italianos neo e pós-realistas, os extraordinários Visconti e Fellini. Fellini já tinha sido um caso sério com o 8&1/2, cuja filosofia, ao tempo, nos levava a intermináveis discussões, cortadas por um ou outro comentário mais brejeiro sobre a Cláudia Cardinale. Para não falar da Dolce Vita e das pouco sofisticadas divagações a que Anita Ekberg nos levava. Outros alvos e motivos de discussão foram À Bout de Souffle e Pierrot le Fou, de Jean-Luc Godard.
Tudo isto se passava nos tempos “negros e cinzentos” da “ditadura salazarista”. Ainda hoje não sei a cor dos tempos do Portugal de Abril, mas parece que não são nem negros nem cinzentos.
“A mais bela do mundo”
Não sei quando vi pela primeira vez “a mulher mais bela do mundo”, a Gina Lollobrigida, la Lollo, como lhe chamavam e chamam os italianos; mas foi com certeza no Porto e numa tarde no cinema. Talvez tenha sido naquela dança em Salomão e a Raínha de Sabá, diante do Yul Brynner que, depois de Faraó nos Dez Mandamentos, fazia de Salomão naquele último filme de King Vidor. Mas também pode ter sido no Corcunda de Notre Dame, o filme de Jean Delannoy, onde ela era a Esmeralda, a paixão de um feíssimo Quasimodo – Anthony Quinn. No Corcunda, Gina também dançava, como na Rainha de Sabá, mas estava mais composta, embora sempre provocantíssima para os adolescentes reprimidos do tal salazarismo negro e cinzento que éramos. Ou talvez tivesse sido em Trapézio, de Carol Reed, em que la Lollo era a mulher-objecto, que manipulava – ou objectificava – Tino Orsini (Tony Curtis) e Mike Ribble (Burt Lancaster).
O Burt Lancaster que aqui saltava no trapézio, pirateava no Pirata Vermelho e era o Apache Massai, em Apache, de Robert Aldrich. Mas depois destas fitas todas faria, pela mão de Visconti, o inesquecível príncipe de Salina do Leopardo. Em 46, Lancaster fora o protagonista da versão em cinema de The Killers, de Ernst Hemingway, onde contracenava com Ava Gardner. Pensando bem, bomba sexual que era, Gina não era a mais bela do mundo: antes estavam a Elisabeth Taylor de Bruscamente no Verão passado e a Rita Hayworth de Gilda. E a Ava Gardner, claro.
O caminho da estrela
Luigina Lollobrigida, nascera a 4 de Julho de 1927, em Subiaco, uma pequena comuna do Lácio, 50 quilómetros a leste de Roma. Fora em Subiaco que, 1400 anos antes, S. Bento de Núrcia vivera três anos como eremita, antes de se dedicar a fundar mosteiros que ajudaram à cristianização da Europa, entre eles Monte Cassino, onde viria a morrer.
Gina não fundou mosteiros, e poderá até ter desviado alguns jovens de vocações monásticas; e enquanto S. Bento fora para Subiaco para escapar às tentações de Roma, ela foi para Roma com os pais e as irmãs, em 1944, onde acabou a tentar romanos e outros povos. Aí frequentou a Academia delle BelleArti. Nesse tempo, em 1945, aos 18 anos, foi violada por um futebolista do Lazio. Gina contaria esta memória difícil numa entrevista nos últimos anos de vida, mas não revelaria o nome do violador. Na altura, pagava os estudos, vendendo desenhos e posando para fotonovelas na revista Sogno.
O caminho para o espectáculo e para a fama começou quando concorreu a Miss Roma e, depois, a Miss Itália, ficando em terceiro lugar, a seguir a duas outras futuras actrizes – Lúcia Bosé e Giana Maria Canale. Nesse mesmo concurso, entraram outras bellissime do cinema italiano, como Silvana Mangano e Eleonora Rossi Drago.
Os concursos abriram-lhe a porta para o cinema, onde se estreou em 1947, aos 20 anos, em Folie per l’Opera, de Mario Costa. Depois actuou em filmes de Luigi Zampa e Carlo Lizzani. Em 1949, casou com Milko Scofic, um médico jugoslavo que tratava os refugiados alojados na Cinecittá. Scofic foi manager de Gina por alguns anos, tentou também o cinema como actor e produtor, tiveram um filho e separaram-se em 1971.
Em 1950 a “bomba” cruzou o Atlântico: Howard Hughes, o multimilionário aviador, produtor e realizador de cinema, deu por ela. Hughes era obcecado com os micro-organismos (morreu em autorreclusão para evitar contágios) mas a fobia não o impediu de praticar “o desporto favorito dos homens”, reunindo uma impressionante colecção de casos com actrizes famosas: Marlene Dietrich, Ida Lupino Katherine Hepburn, Ava Gardner, Jane Russel, Ivone de Carlo, Elisabeth Taylor. Hughes teria visto uma fotografia de Gina em bikini, numa revista, e convidou-a a ir para os Estados Unidos com um contrato milionário, em que, por sete anos, ficava obrigada a trabalhar em exclusivo com a RKO (Radio Keith-Orpheum Corporation), a produtora que Hughes comprara.
Gina ficou dois meses e meio na América, em Los Angeles, no Town House Hotel, sob permanente assédio de Hughes, assédio a que parece ter resistido.
Voltou a Itália e, a partir daí, entrou nas fitas que a tornaram célebre: uma das primeiras foi Altri Tempi – Zibaldone, de Alessandro Blasetti. Blasetti tinha sido um importante realizador do Vintennio fascista, com filmes políticos como 1860, um épico nacionalista sobre a unidade italiana, e Vecchia Guardia, que celebrava a Marcha Sobre Roma. Antes, fizera um filme mudo também de propaganda fascista, Sole. Foi um dos primeiros realizadores a olhar para o cinema, não só como obra de arte pessoal – do regista ou realizador –, mas também como trabalho conjunto, um produto da indústria. Nos seus escritos sobre cinema na revista Cinematografo, Blasetti comparava a crise e decadência da produção italiana nos anos 20 com a florescente situação do cinema alemão. Sole foi o último filme importante do mudo em Itália; nele – e em 1860, em Vecchia Guardia e noutras fitas suas da era fascista –, veem-se as influências cruzadas do cinema épico de D. W. Griffith com o novo realismo soviético de Eisenstein e Dziga Vertov. De resto, Sole (1929) e Resurrectio (1931), de Blasetti, são considerados pelos críticos antifascistas obras percursoras do neo-realismo. Tal com Estaline e Hitler, Mussolini percebera bem a importância do cinema para a opinião pública e investira a sério na renovação do cinema italiano; em 1937, fizera a Cinecittá, uma cópia dos estúdios de Hollywood, onde passaram a ser produzidas dezenas de fitas por ano.
Blasettti não gostou da aproximação de Roma a Berlim e ao hitlerismo e os seus últimos filmes no tempo da guerra, La corona di ferro (1940) e Quattro passi fra le nuvole, são apolíticos. Em 1946 filmava Un giorno en nella vita, história de um grupo de partigiani comunistas que se escondem num convento.
Ao contrário de Blasetti ou de Rosselini, Gina não tinha passado fascista, por isso não precisava de provar o seu antifascismo; nos anos 50 filmava as fitas que a tornaram mais conhecida em Itália e no mundo, fitas em que a sua beleza, mais popular que sofisticada, a celebrizou para sempre. Filmes como Fanfan la Tulipe, de Christian Jacques, com Gérard Philipe; Pão, Amor e Fantasia, de Luigi Comencini, com Vittorio de Sica, ou O corcunda de Notre Dame, em que Anthony Quinn, que era bem grande, fazia de Quasimodo (se fosse hoje talvez anões verdadeiros invadissem o cinema).
Em 1954, dirigida por Luigi Zampa, faz o papel de Adriana, uma jovem bela e pobre, que, nos anos trinta, em Roma, vive uma série de experiências com homens, que acabam mal. O guião de La romana era uma adaptação de uma novela de Alberto Moravia.
Em 1955 é La Donna piú bella del mondo, de Robert Z. Leonard, em que Gina encarna a cantora de ópera Lina Cavalieri. Aqui contracena com Vittorio Gassman e, em 1956, Gina ganha o David di Donatello, o óscar italiano.
Há também os tempos americanos – com o Trapézio, Salomão e a Rainha de Sabá, Quando Setembro vier – filmes em que foi dirigida por uma série de realizadores grandes de Hollywood e contracenou com Rock Hudson, Frank Sinatra, Humphrey Bogart.
Era, à sua maneira, segura e frontal. Sobre Rock Hudson, diria: “I knew right away that Rock Hudson was gay, when he did not fell in love with me”.
Humphrey Bogart, que conhecia bem as duas, ou as três, diria que Gina Lollobrigida fazia de Marilyn Monroe uma Shirley Temple…
A partir da década de 60, foi espaçando a sua participação no cinema e dedicou-se à escultura e à fotografia. Chegou também a entrevistar Fidel de Castro e a dirigir um documentário sobre ele, em 1972. Também terá tido o seu momento de Sunset Boulevard, com romances com homens mais novos, o que deu lugar a alguma maledicência jornalística.
A era das beldades
Esta era das beldades, das “bombas”, das “mulheres-maravilha”, respirando sensualidade num mundo de interditos religiosos e institucionais, começou com o Riso Amaro, de Giuseppe de Santis, com a Silvana Mangano como heroína. Silvana, Gina e Sophia Loren, encarnavam os tais símbolos sexuais nos anos 50. Nos anos 60, seria a vez de Claudia Cardinale, protagonista, em 1963, de O Leopardo, de Visconti, e de 8½, de Federico Fellini; em que aparecia também uma outra diva, a loira Sandra Milo. Outras estrelas, como Silva Koscina ou Stefania Sandrelli, faziam os peplum no Mediterrâneo de Ulisses e Hércules.
Todas estas mulheres, estas actrizes, fizeram parte da nossa juventude, dos arquétipos e dos sonhos da nossa juventude, no tal país “negro e cinzento”, em que os interditos eram alegremente violados, com acessos de arrependimento, perdão e garantia de voltar a pecar.
Gina Lollobrigida esteve em muitas destas passagens rituais, em que, a ouvir os mais crescidos e vividos, crescíamos ou achávamos que ficávamos mais homens. Também por isso, e apesar de reconhecer que ela talvez não seja uma grande atriz dramática, como a Magnani, a Marlene Dietrich, a Simone Signoret, a Alida Valli ou a Katherine Hepburn, não posso deixar de pensar nela, agora que partiu, com aquela ternura e nostalgia que temos pelas companhias e companheiras de outros velhos e felizes tempos.