O título deste artigo de opinião pode parecer um contrassenso. Mas acreditamos que não o é.
O bullying tem estado na ordem do dia, assim como as questões associadas à criminalidade juvenil, com destaque para as dinâmicas dos gangues.
Todos os governos anunciam grupos de trabalho para lidar com estas questões e até chegam a ser feitos diagnósticos de situação e propostas medidas. Porém, as medições dos respetivos impactos ficam aquém, transparecendo a noção de que não existe uma verdadeira continuidade de políticas públicas e que tanto os governos como a administração pública vão funcionando por ímpetos momentâneos com a solidez da espuma dos dias.
A abordagem destes problemas é multidimensional e não é simples. Todavia, hoje queremos focar-nos numa possível medida cuja aplicação se pode revestir de múltiplas formas e feitios, sendo, acima de tudo, custo-efetiva. A dinamização da aprendizagem de artes marciais, enquanto veículo de valores e competências para ajudar os jovens a lidarem melhor com a violência e as suas próprias emoções.
Estamos cientes de que a questão das artes marciais entre os jovens sempre foi alvo de controvérsia.
Diversos estudos sobre os efeitos da sua prática pelos jovens chegaram a resultados contrastantes. Enquanto alguns se referem a oportunidades pessoais e sociais aprimoradas para aqueles que participam, outros alertam para níveis aumentados de agressividade e comportamento antissocial.
Vertonghen e Theeboom (2010) procederam à análise de mais de 350 artigos durante dois anos, de forma a chegarem a uma conclusão sobre esta problemática. O desfecho alcançado foi que, embora uma quantidade considerável de pesquisas sobre os resultados sociopsicológicos da prática de artes marciais tenha sido conduzida ao longo dos anos, até àquele momento ela não havia trazido clareza quanto à dualidade existente sobre os possíveis efeitos da prática de artes marciais.
Neste sentido, propuseram uma melhor compreensão do problema através da análise de fatores influentes específicos, tais como: as características dos participantes, o tipo de filosofia subjacente (a forma como a arte marcial é ensinada e os seus fins – desenvolvimento pessoal ou competição), o contexto social e as qualidades estruturais de cada desporto.
Vejamos alguns exemplos avançados pelos autores:
Um estudo entre países membros da Associação Europeia de Educação Física (EUPEA) indicou que, na maioria dos países, as artes marciais são introduzidas durante as aulas de educação física nas escolas secundárias, porque acredita-se que o envolvimento com artes marciais pode fornecer oportunidades educacionais positivas aos alunos (Theeboom e De Knop, 1999 ).
Há registo de iniciativas específicas em vários países onde educadores e assistentes sociais fizeram uso das artes marciais no seu trabalho com jovens socialmente desfavorecidos (Abrahams, 2004 ; Bosch, 2008 ; Theeboom et al., 2008 ; Zivin et al., 2001).
A relação entre (algumas) artes marciais e adolescentes tem sido considerada problemática devido a uma suposta relação com processos de socialização negativos. Por exemplo, vários autores têm defendido a proibição do boxe para jovens com menos de 16 anos por motivos médicos, filosóficos e éticos (por exemplo, a American Academy of Pediatrics, 1997 ; Pearn, 1998 ). Pearn (1998) chega a propor que “ … não há lugar na sociedade contemporânea para um desporto juvenil que tenha como objetivo principal infligir dano cerebral agudo num oponente”. Esta perspetiva ganha ainda mais relevo à luz da chamada “competição” dentro das artes marciais (Bottenburg e Heilbron, 2006 ). É uma tendência claramente visível na Tailândia, onde crianças entre cinco e nove anos praticam boxe tailandês e começam lutas profissionais por volta dos 12 a 14 anos (David, 2005).
Um estudo norueguês concluiu que a participação em desportos de força, como levantamento de pesos, luta livre e artes marciais orientais (karaté, judo e taekwondo) levou a um aumento no comportamento antissocial em jovens (Endresen e Olweus, 2005).
Kuan e Roy (2007) usaram o “Psychological Performance Inventory” (PPI) para examinar diferenças em autoconfiança e controlo de energia negativa entre atletas de wushu (medalhistas comparados a não medalhistas). Os resultados revelaram que os medalhistas pontuaram significativamente mais alto em autoconfiança e controlo de energia negativa do que os não medalhistas. Consequentemente, também concluíram que atletas bem-sucedidos relataram resultados mais positivos em traços de personalidade do que atletas menos bem-sucedidos.
Vários investigadores estudaram as diferenças em traços de personalidade de lutadores marciais entre diferentes estilos de ensino (ou seja, métodos de treino tradicionais versus modernos). Enquanto a abordagem tradicional foi definida como estando focada em aspetos meditativos, enfatizando o autocontrolo, a prevenção de conflitos, o respeito pelos outros, o treino dos katas e o estudo da filosofia, o treino moderno foi descrito como enfatizando o desporto e os aspetos competitivos, bem como os aspetos mais físicos (Donohue e Taylor, 1994; Nosanchuk e MacNeil, 1989).
Trulson (1986) sugeriu que a prática de artes marciais tradicionais tem uma influência positiva nos traços de personalidade dos participantes, em oposição ao treino em artes marciais modernas. Também Najafi (2003) dividiu a sua amostra em função dos estilos de ensino e chegou a conclusões semelhantes. As suas descobertas revelaram que os praticantes de artes marciais tradicionais enfatizam mais a humildade e relatam maiores níveis de esperança em comparação com aqueles que estão envolvidos em artes marciais modernas. Neste estudo em concreto, a esperança foi definida como “…a motivação para realizar a tarefa árdua”.
Em geral, pesquisas conduzidas após meados dos anos 90 e com foco em jovens mostraram que a prática de artes marciais tem efeitos positivos nos perfis de personalidade dos adolescentes, o que confirma claramente as descobertas de estudos anteriores.
Embora a maioria dos estudos se tenha concentrado em traços de personalidade de lutadores de artes marciais em geral, alguns autores analisaram especificamente a relação entre artes marciais e o comportamento agressivo (Daniels e Thornton, 1990; 1992; Nosanchuk, 1981; Rothpearl, 1980; Skelton et al., 1991). Em geral, concluíram que um treino mais longo está associado a níveis mais baixos de agressividade.
Porém, como indicado por Jones, MacKay e Peters (2006), não é apenas importante considerar o tipo de arte marcial, mas sim o papel desempenhado pelo instrutor, que pode criar estilos diferentes dentro de uma arte marcial. O efeito das artes marciais ensinadas pode ser muito diferente dependendo de quem as está a ensinar. Os poucos estudos que se referiram explicitamente ao tipo de orientação (por exemplo, Najafi, 2003; Nosanchuk e MacNeil, 1989; Trulson, 1986) relataram resultados diferentes de acordo com a abordagem específica que foi usada.
Um clima específico, criado pelo comportamento do professor, pode ter um impacto nas respostas motivacionais dos jovens. Ames (1992) argumentou que podem ser identificados dois climas motivacionais: um clima de mestria, onde a melhoria e o esforço autorreferenciados são o foco, e um clima de desempenho, onde os alunos são encorajados a ter um desempenho melhor do que os outros.
Vertonghen e Theeboom (2010) advogam que futuros estudos podem trazer uma nova abordagem à relação entre as características dos participantes e a arte marcial escolhida. Por exemplo, pode ser interessante determinar até que ponto as metas de realização dos adolescentes que praticam uma arte marcial mais difícil (por exemplo, kick-/Thai boxing) diferem daqueles que praticam uma arte marcial mais suave (por exemplo, aikido).
[As artes marciais podem ser classificadas como suaves ou duras. Por exemplo, o aikido é considerado uma arte marcial suave, porque a força e a intenção de um ataque são usadas contra o oponente, para neutralizá-lo. Enquanto o kick-/Thai boxing é considerado uma arte marcial dura, porque geralmente há mais ênfase em aparar (ou apenas bloquear diretamente) um ataque (o que não permite usar a força do oponente)].
Chegados a este ponto, acreditamos que lançámos mais questões que certezas sobre a mais-valia da aprendizagem das artes marciais para lidar com as questões do bullying e da criminalidade juvenil. Porém, temos uma certeza. Se porventura, algum pai/mãe encontrar um instrutor/mestre de artes marciais cujos valores e postura perante a vida estejam alinhados com os deles, não desperdicem a oportunidade (para as vossas crianças)!
Todos os que têm uma faixa negra são mestres. Mas nem todos estão aptos a educar para a vida.
Bibliografia de referência: Vertonghen J, Theeboom M. The social-psychological outcomes of martial arts practise among youth: a review. J Sports Sci Med. 2010 Dec 1;9(4):528-37. PMID: 24149778; PMCID: PMC3761807.