Faz mais de vinte anos que comecei a trabalhar, e sempre o fiz na área da banca. Convivi com muitas pessoas, dos mais variados cargos e níveis hierárquicos. Antes, tive professores que eram também gestores bancários – alguns até de alto gabarito. Apesar de tantas pessoas ter conhecido, nenhuma delas usava cartola, nem fumava charuto – pelo menos no local de trabalho -, e só um par usava bengala, mas mais por motivos de saúde do que por estatuto.
É por esta minha falha de convívio com capitalistas selvagens que fico sempre intrigado quando oiço partidos, comentadores, ou até pessoas e entidades com responsabilidade formal sobre a área bancária fazerem certas afirmações.
Sendo Portugal um país pobre para os padrões europeus, com pouca acumulação de capital, culturalmente socialista e de forte influência católica, é natural que numa análise superficial se confundam bancos com usurários, exploradores dos pobres ou usurpadores da riqueza dos povos. Chega até a custar ouvir declarações sonoras, e ver como estas fazem títulos de jornais, quando são populistas, simplistas ou até fundamentalmente erradas. E, como sempre, sem um verdadeiro contraditório.
O facto de um banco prestar um serviço de intermediação de dinheiro polui muitas vezes a avaliação da sua utilidade social. Além de ser a mais eficaz ferramenta para a alocação eficiente de capital numa economia, é útil também na gestão da poupança das populações (permitindo assim a acumulação e perpetuação da sua riqueza), e no contexto específico nacional, como nas nações modernas, é um canal de propagação da política monetária. A vida dos povos sem banca seria para mim uma dificuldade, porque teria de procurar outra área de trabalho, para as populações uma confusão onde não teriam onde obter crédito com facilidade nem onde guardar as suas poupanças, e onde os bancos centrais não poderiam, por exemplo, influenciar taxas de juro.
Por ver a banca e o sistema bancário como fulcrais para o sucesso de uma sociedade moderna, custou-me ouvir o Sr. Governador do Banco de Portugal divagar sobre comissões bancárias, em particular as relacionadas com amortizações antecipadas em contratos de crédito habitação, instando o Governo a prolongar a atual isenção imposta por decreto lei.
Esta comissão refere-se especificamente à situação trivial do cliente que se dirige ao banco para amortizar antecipadamente o seu crédito habitação. Uma vez que os créditos à habitação são normalmente contratos de longa duração, é comum que durante a sua vigência os clientes possam em determinado momento querer fazer um abatimento do seu montante em dívida.
Habitualmente esta amortização é feita devido a uma de duas situações: ou o cliente dispõe de liquidez extra que decide utilizar na redução do seu crédito e respectivos encargos, ou encontrou uma alternativa no mercado (leia-se, outro banco) onde poderá dispor de melhores condições e por isso deseja pagar a totalidade do seu crédito, transferindo-o para a concorrência.
Ambas as situações são habituais, representando uma operação com que os bancos lidam diariamente.
Para que esta operação seja levada a cabo, é normalmente cobrado ao cliente uma comissão – um custo pelo serviço extraordinário, uma vez que este não está previsto na regular decorrência do contrato de crédito a habitação. De modo a que os bancos não pudessem lucrar com a miséria alheia, o valor máximo desta comissão está faz já muito tempo tabelado por decreto (Decreto-Lei n.º 74-A/2017), até ao valor de 0,5% nos créditos de taxa variável e de 2% nos de taxa fixa. Para que não seja preciso recorrer a uma calculadora, e a título de exemplo, a comissão corresponde a 2€ numa amortização de 400€, ou 500€ numa de 100.000€ em créditos de taxa variável.
No quadro recente de instabilidade de taxas, nomeadamente de subida das taxas Euribor (o principal tipo de taxa indexante no mercado nacional), muitas famílias viram-se numa situação de aumento abrupto de prestações sendo previsível que muitas poderiam considerar alocar alguns dos seus recursos, porventura até poupanças, à amortização antecipada dos seus créditos – uma operação potencialmente sujeita a comissões. Prevendo este movimento de massas, o Governo proibiu a cobrança de comissões, isentado os clientes deste encargo (Decreto-Lei n.º 80-A/2022 e Decreto-Lei n.º 91/2023).
A afirmação do Sr. Governador rezava sobre a necessidade de manter uma elevada concorrência no mercado do crédito a habitação e de como manter a isenção era para isso essencial uma vez que o fim da isenção seria uma barreira à mudança entre instituições. Como qualquer afirmação simplista, podemos partir de um fundo de verdade, esquecendo toda uma complexidade latente, para se chegar às conclusões desejadas.
A primeira confusão é sobre amortizações parciais e totais de créditos. Se o racional da isenção é o de proteger os clientes da tentativa de serem barrados à sua saída de um contrato, por que motivo isentar ambas, em vez de apenas as de maior valor? Mesmo nesse caso, historicamente, os bancos têm tido uma disponibilidade crónica para financiar, com campanhas mais ou menos permanentes, os novos clientes de crédito habitação por transferência de crédito existente, assumindo este custo adicional. Por que motivo se deve isentar o cliente de um montante quando a instituição financeira concorrente está disposta a arcar com essa despesa?
E se estas minhas dúvidas são mais de lógica e de conceito, há outras questões mais relevantes para a existência desta comissão, que sendo necessariamente uma barreira à saída de um quadro contratual, é também financeiramente justificada.
Há vários motivos que explicam e suportam a cobrança desta comissão (motivos que listarei não por ordem de impacto ou relevância, mas mais por crescendo de complexidade).
Primeiramente, qualquer serviço prestado, por princípio, deve ser pago. Salvo situações em que os clientes tenham contratualizada uma tipologia de conta pela qual pagam e obtêm um cabaz de serviços gratuitos, é lícito que qualquer serviço, por mais elementar que seja, seja remunerado. Obviamente que não se deverá aqui confundir o pagamento por um serviço com a cobrança abusiva que existe em alguns preçários de alguns bancos. A taxa máxima legal aplicável é já em si equilibrada – se não até excessivamente baixa. A isenção de cobrança leva a incentivos errados aos clientes e a um uso ineficiente dos serviços do Banco. A amortização de um crédito implica (pelo menos) dois movimentos contabilísticos, uma atualização de um plano financeiro, com frequência a emissão de um alerta (SMS, email), tudo suportado por estruturas automáticas dos bancos, é certo, mas que têm elas próprias e em si elevados custos e riscos que têm de ser cobertos e acautelados pelas instituições.
Além das questões operativas, há outros impactos, mais relevantes, que os pagamentos antecipados geram, nomeadamente ao nível da gestão da liquidez e do risco de taxa de juro. Estes dois riscos-irmãos da gestão de risco numa instituição financeira foram os responsáveis pela falência do Northern Rock em 2008, ou o Silicon Valley Bank em 2022.
O pagamento antecipado de um crédito por um cliente gera um excesso inesperado de fundos, o que mesmo sendo confortável na gestão da liquidez de um banco (é positivo para a capacidade de pagar atempadamente as suas responsabilidades, mesmo em alturas de stress), perturba a gestão integrada dos valores de caixa. Os bancos, para que possam ser rentáveis, aplicam do modo mais eficiente possível a sua liquidez, nomeadamente em ativos com maturidades longas (com prazos longos). O surgimento, em caixa, de fundos – como em qualquer empresa – gera uma necessidade extra de gestão de tesouraria, levando por vezes a decisões menos acertadas de investimento.
Também na gestão do risco de taxa de juro estas amortizações são relevantes. De modo simplificado, este risco mede o potencial impacto nos resultados de uma instituição que as alterações das taxas de mercado podem gerar. É comum que os bancos possuam responsabilidade de curto prazo (como os depósitos ou financiamentos interbancários) e investimentos de longo prazo (como créditos ou obrigações de tesouro). O pagamento antecipado de créditos por parte dos clientes leva a uma gestão ineficiente deste risco e até a potenciais perdas financeiras.
Acresce que a introdução de uma nova variável a ser tida na gestão bancária – vai criar um elemento de incerteza que deverá ele próprio ser modelizado e integrado nos parâmetros de risco, nas dotações de capital que a instituição a si auto-aplicada para garantia de robustez, e por último uma exigência de capital regulatório extra imposto pelos reguladores e/ou supervisores. Todos estes elementos são redutores da eficiência e da rentabilidade de um banco.
Por fim, mencionar que os bancos frequentemente se protegem de certos riscos com a obtenção de seguros (aka coberturas, sendo para este caso os mais comuns os contratos de troca ou swaps). As coberturas são compradas, como qualquer seguro, a troco de um pagamento que tem de ser arcado pelo banco, podendo ser complexos de obter, ou por vezes bastante dispendiosos. O fenómeno do pagamento antecipado do crédito vai tornar estes seguros ineficientes e obrigar ou ao seu cancelamento (com custos extra) ou a nova análise e contratação renovada das coberturas de risco.
A circunstância nacional (e de muito bancos centrais, na verdade) de o banco central nacional e a instituição responsável pela supervisão bancária local serem uma mesma, assim como a de o Sr. Governador usar esses dois chapéus com funções muito diversas e por vezes até contraditórias, leva a que o cuidado das declarações por ele proferidas devesse ser redobrado, sendo estas pesadas e avaliadas com cuidado.
Caso contrário fica-se tristemente, como neste caso específico, com a sensação de que as afirmações solenes e formais do Banco de Portugal têm pouco peso e pouco rigor.