Antes demais uma declaração de interesses: não sou monárquica, foi assim, com atenção crítica, que assisti aos acontecimentos deste sábado.

E que vi? Longe de ter assistido a uma obsoleta cerimónia de coroação, acompanhei fascinada palavras e gestos antiquíssimos, entoados e repetidos pelos vários monarcas deste país no acto da coroação, alguns dos quais julgo serem actuais e tão essenciais como no passado no compromisso de um líder: “não vim aqui para ser servido mas para servir”, disse Carlos em tom introdutório. Pareceu-me também vislumbrar ali a maleabilidade de um regime ancestral para se modernizar e adaptar aos tempos modernos. E por fim concluí que nenhum outro regime fez ou poderá fazer mais por este país do que aquele de que os britânicos dispõem.

Para quê então criticar ou fantasiar que outro lhes poderia ser mais conveniente?

Há uma franja de republicanos ingleses (que eu até entendo, assim como entendo a dificuldade em tolerar o que não gostamos no país em que vivemos) que afirma que a grande maioria de britânicos viveria melhor numa república. Antes de mais esta questão é espúria, todos quantos cá moram sabem que a transformação do regime é um assunto morto, que não faz os britânicos vibrar, nem sequer quando se discute, como já se discutiu a abolição da Câmara dos Lordes, se ponderou a erradicação do rei.

Sábado compreendi melhor que nunca que este povo não estaria melhor numa república.

Resume-se tudo a uma ponderação pragmática e sem qualquer fundo ideológico, e por isso é secundário que uma monarquia hereditária permita privilégios ditados por acasos de nascença, e nesse sentido tenha uma maior propensão a uma maior desigualdade social.

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O relevante é o balanço do que a monarquia constitucional tem feito por este país, o que ultrapassa em muito as suas desvantagens. Em primeiro lugar, tem funcionado como uma “cola” ou argamassa a favor de uma maior coesão e unidade entre quatro nações que nunca estiveram tão em perigo de desintegração desde a sua fundação como hoje.

Em segundo lugar, a monarquia confere a todos os britânicos um sentido de pertença e de identidade positiva, incrementador de auto-estima (arriscado, sim, mas preferível à falta dela ou à apatia).

Por fim, a monarquia permite a diferenciação do RU no conjunto das nações, dando-lhe um estatuto diferenciado, invulgar, mais raro. Essa diferença, que tem o seu lado excêntrico, também assenta como uma luva à maioria dos súbditos.

Sábado vimos também em actuação um regime que convive bem com paradoxos, nos quais encontra um equilíbrio sem se desmoronar, e que é prova sobeja da sua civilização. O paradoxo por exemplo do formalismo informal com que Carlos cumpriu todo um ritual, assente sobretudo em formalismo, emprestando-lhe um toque de informalidade e de à-vontade invulgares, não retraindo na sua expressão facial e gestual o seu lado mais humano, nomeadamente a humildade e a comoção que lhe provocavam a sua investidura e a sinceridade dos votos que tomava (memorizei o de proteger os mais vulneráveis e minorar a desigualdade social).

Sábado consolidou-se também a capacidade inclusiva deste regime, bem como a pluralidade étnica e linguística que o compõem. Pela primeira vez, ouviu-se numa coroação a língua do país de Gales, o inglês com pronúncia escocesa, e representantes das comunidades hindú, muçulmana e Sikh a quem foi conferido um papel proeminente no ritual.

Nada do que aconteceu, pois, me pareceu ter um excesso de exibicionismo, mas antes correspondeu à expressão de uma cultura esteticamente rica, musicalmente por exemplo, ouvimos as músicas para liturgia de compositores britânicos entoadas pelo irrepreensível coro infantil/juvenil da Abadia de Westminster, coros que neste país acompanham os serviços religiosos ou “evening songs” da igreja anglicana.

E assim termino como comecei: sendo republicana e achando que a este país fez alguma falta não ter passado por uma revolução francesa, não ousaria dizer que lhe faz falta descartar-se deste regime. Para quê? Tal como o conhecemos, seria o seu fim.