Há um espectro que assombra a Europa, mas desta vez não é o espectro do comunismo.

O espectro é cesarista, como lhe chama Rosanvallon, uma deriva de autoritarismo plebiscitado, que os sociólogos modernos definem por democratura e que tem exemplos recentes na Hungria, na Polónia ou na Turquia, entre outros.

Em democratura não há base racional para o debate. Ela alimenta-se de teorias conspirativas para reivindicar – simuladamente mortificada mas, na verdade, com cínico consolo demagógico – o fim do défice de representação democrática e o regresso da lei e da ordem conforme à lógica do poder egocrático.

Esse espectro não se agita só para lá da antiga cortina de ferro. Ele já começa a assombrar, pé ante pé felpudo, as fronteiras mais próximas, se é que já não entrou nelas, qual vírus disfarçado de sedução populista.

As democraturas têm da justiça, como da imprensa, uma ideia confusa, mas sobretudo desconfiada, quando não odiosa, se elas forem tão independentes quanto incómodas para as elites culpadas, sejam elas políticas ou económicas, que desejam exercer um poder absoluto, livre de incómodos, oposições ou concorrência.

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Segundo a democratura, a justiça anda em roda livre e é preciso deitar-lhe a mão. Deitar-lhe a mão é, nada mais, nada menos, do que acabar com a justiça democrática e fazer dela uma caricatura para deixar de aborrecer as mesmas elites.

No exemplo Turco do homem-povo encarnado por Erdogan, o estado de emergência constantemente renovado a pretexto do Putsh de 15 de Julho de 2016 transformou o poder judicial num poder tutelado politicamente. É o homem-povo quem nomeia 12 dos 15 membros do Tribunal Constitucional e 6 dos 13 membros do Alto Conselho de Juízes e de Procuradores, o equivalente ao nosso Conselho Superior da Magistratura ou do nosso Conselho Superior do Ministério Público. Os restantes 7 membros são designados pela Assembleia Nacional. Depois do Putsch, milhares de juízes e procuradores foram suspensos ou demitidos, deixados sem modo de vida ou subsistência. A par dos juízes e procuradores, milhares de funcionários públicos, jornalistas e advogados foram acusados e degradados à infâmia de traidores. Dos que foram purgados não nos podemos esquecer de Murat Arslan, presidente da associação de magistrados independentes turcos, que continua preso desde Outubro de 2016 e a quem os magistrados substitutos, dóceis ao poder, continuam a negar a liberdade. A ameaça da pena de morte também voltou.

No exemplo Húngaro, que ainda resiste às frágeis ameaças da UE, o partido de Victor Orban, chegado ao poder em 2010, apressou-se a abater as garantias constitucionais do poder judiciário para o submeter ao controlo do poder executivo, brandindo o ditame de que a democracia é a ditadura da maioria sobre a minoria. A castração da justiça começou pela redução da idade da reforma dos magistrados, que passou dos 70 para os 62 anos, levando à neutralização dos juízes mais experientes e certamente dos mais resistentes às mudanças. Os novos magistrados passaram a ser nomeados pelo poder executivo, assim como os que passaram a ocupar o Tribunal Supremo, desde que próximos do poder. O efeito dissuasivo destas medidas sobre as veleidades judiciárias mais críticas ou independentes foi plenamente realizado.

No exemplo Polaco, o partido conservador Direito e Justiça (PiS), chegado novamente ao poder em 2015, começou por expurgar os jornalistas incómodos, por falta de objectividade, e avançou contra o poder judiciário, começando pela reforma do Tribunal Constitucional, onde as decisões, para serem vinculativas, têm que ser votadas por uma maioria qualificada de 13 juízes sobre 15, o que significou a completa paralisia da fiscalização da constitucionalidade das leis em nome da virtuosa retórica da supremacia da princípio electivo: manda quem é eleito e quem faz as leis.

A par disso, em 2016, o ministro da justiça passou a ser também o procurador geral da república.

O controlo sobre todo o Ministério Público passou a ser político-executivo, a que se aliou naturalmente o poder sobre a polícia judiciária. Forçados ou por vontade própria, centenas de procuradores abandonaram a magistratura.

A retórica de limpeza foi constantemente a de se estar a lutar contra o corporativismo da magistratura, a roda livre da justiça e os seus disfuncionamentos – que também ouvimos recentemente a algumas eminências pardas da nossa opinião pública –; além da suspeita lançada sobre os magistrados polacos de que eram corruptos, malandros e comunistas.

A reforma forçada de juízes e de membros do Conselho Nacional da Magistratura, correspondente aos nossos Conselhos, e o poder de o Ministro da Justiça nomear e demitir magistrados serviu a mesma retórica que não era mais do que um assalto ao poder judiciário, em nome do equilíbrio de poderes e em nome da restauração da democracia nas magistraturas. Ouvimos recentemente quase o mesmo, a propósito da reforma do Conselho Superior do Ministério Público, quando se debateu na generalidade a proposta de lei de alteração ao estatuto do Ministério Público.

Não foi sem resistência que essas medidas passaram. Muitos se manifestaram na Polónia contra essas medidas escandalosas e a favor da Constituição, e não foram apenas magistrados.

A Comissão Europeia iniciou um procedimento baseado na violação do artigo 7.º do Tratado da UE, que veio a ter do TJUE uma resposta em Outubro deste ano, ordenando que parte da reforma judiciária empreendida, designadamente a que visava o supremo tribunal e a reforma forçada dos seus juízes, fosse imediatamente suspensa por ser um ataque ao princípio da independência do judiciário.

A Comissão de Veneza, órgão do Conselho da Europa (CoE), emitiu uma opinião evidenciando o perigo grave para a subsistência do Estado de Direito democrático e para a independência de todo o sistema judiciário, tal era golpe do poder executivo e legislativo sobre o judiciário.

Recentemente, o Tribunal de Justiça da UE, no caso C-216/18 PPU, que opôs um cidadão polaco ao Ministro da Justiça e da Igualdade Polaco, a propósito da execução de um Mandado de Detenção Europeu emitido pela Polónia, decidiu que “Uma autoridade judiciária chamada a executar um mandado de detenção europeu deve abster-se de aplicá-lo se considerar que existe um risco real de que a pessoa em causa sofra uma violação do seu direito fundamental a um tribunal independente e, portanto, da essência do seu direito fundamental a um julgamento justo devido a deficiências susceptíveis de afectar a independência do poder judicial no Estado-Membro de emissão”.

A própria Rede Europeia de Conselhos de Justiça, de forma unânime, suspendeu do seu seio o KRS (Conselho Superior Judiciário Polaco) por considerar que violava os estatutos da Rede, na medida em que não garantia a independência e autonomia na administração da justiça na Polónia. Os Conselhos Superiores, diz a RECJ, têm por fundamental função a salvaguarda da independência do poder judiciário e de cada um dos seus magistrados e deve ser independente do poder político executivo ou legislativo, enviando, assim, uma clara mensagem de condenação ao poder político polaco.

Esse espectro tem-se difundido por Malta, República Checa, Luxemburgo ou pela Ucrânia.

Como pode existir uma justiça com parâmetros mínimos de máxima independência, de máxima imparcialidade e de máxima integridade se quem exerce essa justiça é directamente nomeado, condicionado ou posto sob o temor reverencial do poder político?

A justiça é para ser exercida em nome do povo e não em nome do poder político, o que nos traz à recente discussão parlamentar sobre a proposta de lei que visa aprovar o novo Estatuto do Ministério Público e no âmbito da qual, de surpresa, os dois partidos do centro político, o Bloco Central PS e PSD, se puseram aparentemente de acordo para discutir e provavelmente alterar a composição do Conselho Superior do Ministério Público, um de forma clara, outro de forma sibilina – segundo dizem –, para equilibrar a representação democrática de quem compõe o Conselho, seja pela equivalência de membros políticos ou nomeados politicamente, seja pela sua predominância, à semelhança viável do que sucede com o Conselho Superior da Magistratura, onde 8 membros são magistrados e 9 escolhidos pelo poder político.

É aqui que o espectro também nos começa a assombrar, o espectro da regressão do Estado de Direito democrático assente na separação de poderes.

E começa com um equívoco remediável.

Se há algum erro de composição dos Conselhos Superiores da magistratura, esse erro existe na composição do Conselho Superior da Magistratura. É esse que precisa de ser afinado e não o Conselho Superior do Ministério Público.

O GRECO, órgão do CoE, na sua recomendação VI do Relatório de quarta Avaliação sobre Portugal (2016), a propósito da prevenção da corrupção dos membros do parlamento, dos juízes e dos procuradores, fez constar que “O papel dos conselhos judiciais como garantes da independência dos juízes e do judiciário é reforçado, em particular, ao estabelecer na lei que não menos de metade dos seus membros são juízes eleitos pelos seus pares”.

O mesmo GRECO, no seu relatório de conformidade de 2018, sobre a avaliação efectuada em 2016, censurou o facto de a sua recomendação VI não ter sido implementada, apesar das promessas apresentadas pelas autoridades portuguesas.

A Relatora da ONU do Gabinete das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Gabriela Knaul, no seu relatório de 2015 sobre Portugal, apoiou as preocupações da Associação Sindical dos Juízes Portugueses sobre a composição do CSM, constituído maioritariamente por membros não eleitos pelos seus pares, e solicitou a adopção de um modelo de composição do CSM, tendo em conta, por exemplo, a recomendação de 2010 do Comité de Ministros do Conselho da Europa, que sugere que pelo menos metade dos membros do Conselho sejam juízes eleitos pelos seus pares.

A Comissão de Veneza, a que já nos referimos, a propósito dos standards internacionais do governo dos magistrados, tem chamado a atenção e emitido recomendações ou opiniões sobre a composição dos Conselhos Superiores e sobre a presença de membros não magistrados. Sobre estes fez várias vezes notar que nem sequer há garantias que tenham formação jurídica, embora tenham responsabilidades para decidir em processos disciplinares e outros que envolvem a interpretação e a aplicação da constituição e das leis.

Não se percebe que alguns opinion makers apelem à participação da sociedade civil nos Conselhos ficando sem se saber se pretendem que neles sejam representados os talhantes, coveiros ou estivadores, entre outros homens bons, como se não fosse verdade que, na prática, os membros não magistrados são sempre juristas de formação e na sua maioria advogados.

A propósito disso, a mesma Comissão de Veneza e o GRECO salientam que esses membros não magistrados podem estar nos Conselhos em part-time, um facto não despiciendo se tivermos em conta que, de facto, esses membros não magistrados ficam expostos a toda e qualquer hierarquia e a laços profissionais que continuam a preservar como interesses próprios, que não têm nada que ver com a função que exercem nos Conselhos, sejam no sector privado, seja no sector público, onde continuam a receber o seu salário e a ter que prestar contas, ficando na dependência dos interesses que os sustentam e empregam.

O conflito de interesses é patente e adensa as suspeições. Tanto as funções em part-time dos membros não magistrados, quanto a falta de uma maioria de magistrados nos Conselhos estão identificados pelos organismos mais representativos do CoE e da prevenção da corrupção como ameaças potenciais à independência do judiciário.

Essas preocupações estão bem analisadas e reflectidas no recente acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem precisamente relativo a um caso apresentado contra Portugal, o caso Ramos Nunes de Carvalho e Sá, no qual se discutem os parâmetros fundamentais de garantia da independência do judiciário e entre eles o de que uma maioria de membros dos Conselhos judiciários devem ser eleitos pelos seus pares.

Qual é, afinal, a importância dos Conselhos Superiores, e da sua composição maioritária por magistrados, na garantia da independência da justiça?

Os Conselhos têm uma importância decisiva na nomeação e na carreira dos magistrados, seja para a sua promoção, seja para a sua disciplina.

A carreira e disciplina dos magistrados têm de estar a coberto de qualquer influência ou controlo político, seja do poder executivo, seja do poder legislativo. É essa, na prática, a tradução concreta da independência interna e externa, no que respeita aos juízes, e que, para o Ministério Público, tem a mesma equivalência na autonomia interna e externa.

Não se trata aqui de corporativismo ou de anacronismo romântico, como dizem aqueles que pretendem ofuscar a discussão, ao chamar salazarenta a essa resistência à sociedade civil e à intervenção dos partidos políticos na nomeação dos membros dos Conselhos.

Quem o faz esquece-se que foi com o Estado Novo e com Salazar, desde 1932, que o Conselho Superior Judiciário foi transfigurado numa câmara de eco do poder do ditador, através da sua composição, na totalidade, por membros escolhidos pelo Governo, regime que apenas se modificou em 1976, onde deixaram de existir membros nomeados pelo poder político.

Chegados aqui, o que é que um Conselho Superior do Ministério Público, composto maioritariamente por membros não magistrados, vai poder decidir sobre a nomeação, carreira e disciplina dos magistrados do Ministério Público?

De acordo com a proposta de lei em discussão e no âmbito da qual esta questão sobre a composição do CSMP se centra, o CSMP tem a competência disciplinar e de gestão dos quadros do Ministério Público. Cabe-lhe nomear, colocar, transferir, exonerar, apreciar o mérito profissional, exercer a acção disciplinar sobre os magistrados do Ministério Público. Cabe-lhe nomear o Vice-Procurador-Geral da República e prover os lugares de Procuradores-Gerais Regionais. Cabe-lhe aprovar o regulamento eleitoral, o regulamento interno da PGR, o regulamento de inspecção do Ministério Público e demais regulamentos que lhe estejam reservados aprovar. Cabe-lhe aprovar a proposta de orçamento da PGR. Cabe-lhe deliberar e emitir directivas em matéria de organização interna e de gestão de quadros. Cabe-lhe propor ao PGR a emissão de directivas a que deve obedecer a actuação dos magistrados do Ministério Público. Cabe-lhe determinar a realização de averiguações, inspecções, sindicâncias, inquéritos e processos disciplinares. Cabe-lhe aprovar o regulamento do DCIAP. Cabe-lhe decidir sobre os critérios de mobilidade dos magistrados (reafectação, afectação de processos, acumulação, agregação e substituição). Cabe-lhe deliberar sobre o acesso a Procurador-Geral Adjunto e nomear os membros do júri do concurso respectivo, que também regulamenta. Cabe-lhe deliberar sobre os movimentos de magistrados.. Cabe-lhe nomear o Director dos DIAP´s e dos DIAP´s distritais e deliberar sobre o provimento de lugares de procuradores da república nos mesmos DIAP´s distritais. Cabe-lhe deliberar sobre o provimento de lugares de magistrado do Ministério Público coordenadores de comarca. Cabe-lhe deliberar sobre o provimento do lugar de director do DCIAP e dos Procuradores-Gerais Adjuntos e procuradores que aí venham a exercer funções. Cabe-lhe deliberar sobre o provimento do lugar de director do departamento de contencioso do Estado e interesses colectivos e difusos e deliberar sobre o provimento dos lugares dos demais magistrados que aí venham a exercer funções. Cabe-lhe deliberar sobre o provimento dos lugares de director dos departamentos de tecnologia e informação, do departamento de cooperação judiciária e relações internacionais e dos demais gabinetes de coordenação nacional e nomear quem os compõe. Cabe-lhe aplicar medidas e sanções disciplinares. Cabe-lhe ordenar realização de averiguações sobre queixa, participação ou informação que não constitua violação manifesta dos deveres dos magistrados do Ministério Público.

Tamanhas competências estruturais no funcionamento do Ministério Público transformam a composição do CSMP numa questão decisiva sobre as garantias de autonomia interna e de autonomia externa do Ministério Público e dos respectivos magistrados.

É por isso uma discussão que não pode ser aligeirada sob a designação de “controversa”, pois uma nova composição do CSMP que faça prevalecer a influência do poder político ou de quem o representa por nomeação, apenas assegura – contra todas as indicações fetopáticas lançadas pelas instituições internacionais –, a efectiva malformação congénita do Estatuto do Ministério Público, que o bloco central quer fazer discutir e porventura aprovar, com o risco de desestruturar o sistema constitucional do Estado de Direito e da separação de poderes.

Haverá sempre, por parte do poder político, mesmo em democracia, a vontade de condicionar a justiça, a começar pelo Ministério Público, por ser uma magistratura de promoção e iniciativa.

Como já dissemos noutra ocasião, é inútil ter um juiz independente na jurisdição penal se não existir um órgão também independente que lhe requer a aplicação da lei penal de modo igual para todos. Mas para ser considerado autoridade judiciária independente não basta não basta ao Ministério Público a designação de autónomo. É necessário o concurso de um conjunto de características que assegurem a prerrogativa. Para ser uma magistratura credível no cumprimento das suas atribuições, constitucionais e legais, e para assegurar o acesso imparcial à justiça, tem de recusar qualquer ponto de equilíbrio ou de dependência em relação ao poder executivo (os dois pilares – Governo e Presidente da República) e em relação ao poder legislativo.

Garantir a distância efectiva em relação ao poder político é condição para se exigir ao Ministério Público responsabilidade e prestação de contas e é condição indispensável para se conquistar confiança na justiça, tratar de igual modo todos os cidadãos aos olhos da lei democrática e preservar vínculos sociais. O Ministério Público apenas deve fidelidade à democracia, lealdade à Constituição e ao Direito e serviço aos cidadãos.

Para contornar os incómodos que uma justiça independente promovida pelo Ministério Público pode causar, nada mais evidente do que controlar o modo como se escolhem os magistrados, como se colocam os magistrados nos  lugares chave e como se podem descartar.

E para isso é fundamental controlar politicamente o Conselho Superior do Ministério Público, que deixa de ser o garante da sua autonomia.

A esse controlo associa-se todo o novo quadro do Estatuto, que a par do já de si crítico modelo constitucional de nomeação política do PGR, vem acentuar os deveres e as sanções e a possibilidade de accionar o bordão disciplinar sobre as costas dos procuradores, a par de um sistema de consolidação da confiança hierárquica na ocupação de cargos, aspectos já escrutinados pelo SMMP no seu parecer sobre a proposta do novo Estatuto.

Não menos importante do que isso, a direcção da investigação criminal, dados os poderes do CSMP no provimento dos lugares para departamentos mais representativos, ficará para sempre sob a suspeita de que acusar ou não acusar, levar a julgamento ou recorrer será uma opção politicamente contaminada e não imparcial ou integra, apartada de critérios de legalidade e de objectividade.

A posição institucional do Ministério Público, se for um instrumento do poder político, não garante isenção e imparcialidade de actuação e acaba por condicionar a posição de independência e de imparcialidade dos próprios tribunais, como a Comissão Constitucional assinalou no Parecer n.º 8/82.

Dizem que não se quer um Ministério Público que através do Estatuto defina alvos preferenciais em atenção à qualidade dos sujeitos, designadamente os titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos nos crimes de corrupção, recebimento indevido de vantagem, tráfico de influência, participação económica em negócio e prevaricação.

Para quem gosta de lembrar Camus, compreendemos que Camus dissesse que acreditava na justiça mas que não a defenderia se antes tivesse que defender a sua mãe. Mas mãe é mãe! Sacrificar princípios a outro tipo de parentes, afiliados ou amigos políticos já não parece consentâneo com quem tem responsabilidades político-legislativas.

Dir-se-á que a questão da composição do Conselho por uma maioria de não magistrados constitui a pedra de fecho do apetite pelo controlo da política criminal e pela submissão dos magistrados do Ministério Público a esse controlo e manipulação, comprovando o movimento de recuperação dos poderes político-governativos na investigação criminal, até agora assente predominantemente no condicionamento dos meios, mas que também se tem evidenciado nos constantes ataques ao seu estatuto, à sua independência e inamovibilidade – e agora também aos princípios relativos à composição dos conselhos superiores –, para além da ainda recente diminuição da sua remuneração, a par da permanente austeridade e falta de recursos, num quadro de crescentes dificuldades de acesso à justiça.

Se a proposta do bloco central passar será uma regressão democrática e o governo do Ministério Público passará a ser feito pela administração do medo sobre os seus magistrados.

Mas fica também uma advertência sincera: Quando algum caso extravasar do judiciário para o político, quem se esconde pragmaticamente das suas responsabilidades políticas invocando a autonomia do Ministério Público vai deixar de se poder aproveitar desse subterfúgio, pois a responsabilidade pelos casos criminais será puramente política.

Não há nenhum complexo de Cassandra na evocação de todos os perigos.

Na verdade, o espectro que assombra a Europa não precisa dos métodos de Erdogan, Orban ou Kaczyńsk.

Pode chegar de surpresa e em pezinhos de lã.

Secretário-Geral do SMMP e representante do SMMP na Medel