Um mar ruidoso no Terreiro do Paço inaugura a nova fonte lucrativa da EDP. Os preparativos começam e com eles o espírito. Aparece todos os anos sem convite e fica mal não ter lugar à mesa, não é português. Indecentemente, traz companhia, a Mariah, todos os álbuns do Bublé e, para os tradicionalistas, o Bing Crosby e o Sinatra. Aquiesce-se o conforto escapista recheado com O Amor Acontece, todos os Harry Potters, Sozinhos em Casa, Die Hard (indiscutivelmente, um filme de Natal, o mesmo não se pode dizer da trilogia do Senhor dos Anéis), pulverizado com clássicos como Música no Coração, The Shop Around the Corner, It’s a Wonderful Life, entre outros. Histórias que iluminam valores de amor, união, perdão, caridade e partilha, que oferecem uma pausa que nos enfarta de rabanadas e esperança para o ano que vem.

Contudo, como diria um alemão sifilítico, a esperança é o pior de todos os males porque prolonga o sofrimento humano, e não foi ele que atormentou a família Von Trapp. Por isso, é meu dever, durante esta época de partilha, promover uma minoria cinemática negligenciada e por vezes ostracizada. Onde se incluem filmes que roubam o nariz vermelho ao Rudolfo e que desmascaram a hipocrisia natalícia com retratos de inseguranças, ansiedades, medos, conflitos existenciais e rivalidades familiares que nos ajudam a enfrentar o desconforto de um peru mal assado, um familiar execrável e a destruição das nossas carteiras neste período consumista.

A programação de filmes natalícios desconfortáveis começa com a incrível adaptação da novela de Arthur Schnitzler, Traumnovelle, por Kubrick. Eyes Wide Shut abre as portas à vida doméstica do casal nova iorquino Bill Harford (Tom Cruise) e Alice (Nicole Kidman) que se apronta para o ritual ilusório do Natal. No extravagantemente iluminado apartamento dos Zieglers, enquanto uma ébria Alice é seduzida por um aristocrata húngaro, Dr. Bill, entre flertes com jovens modelos, assiste o anfitrião de tronco nu e suspensórios e uma prostituta em overdose. Durante o serão seguinte, as portas de perceção de Bill são escancaradas com a partilha da fantasia erótica da mulher, que resultaria no abandono do projeto de família dos Harfords. A conversa de almofada desencadeia vários eventos de que emerge a fragilidade masculina que alimenta o conflito da domesticidade tradicional. Eyes Wide Shut aproveita o estatuto de estrela de Hollywood de Tom Cruise, recria contextos paralelos à vida do ator, examinando o conceito de masculinidade associado, através de insultos com base em rumores distribuídos à sua personagem durante as caminhadas musicalmente inquietantes. Entre meticulosos fade-ins e múltiplas seduções não consumadas com mulheres de características capilares semelhantes a Alice, Bill mascarado é guiado no seu percurso ambiguamente onírico pelo canto de rouxinol jazzista, que o leva ao ritual mais natalício do filme, a infame orgia. A sequência é uma homenagem ao Festival da Saturnália celebrado na Roma Antiga. Em meados de dezembro, os romanos comemoravam o solstício de inverno com inúmeras festas pejadas de álcool, banquetes, máscaras, sexo, apostas e sacrifícios ao deus Saturno. Após o período turbulento de purga, as normas sociais regressaram à vida romana. Ironicamente, o controverso momento faz do último thriller maduro de Kubrick um incontestável filme de Natal, enquanto investiga a paranoia sonâmbula do conflito interno de Bill Harford presente na fidelidade doméstica à qual regressa, como os romanos.

Ainda na temática da domesticidade, mas do outro lado do Atlântico, na corte medieval de Henrique II (Peter O’Toole), o monarca inglês, convida os seus três filhos herdeiros – Richard Lionheart (Anthony Hopkins), Geoffrey (John Castle) e John (Nigel Terry)-, e a rainha, Eleanor (Katharine Hepburn) exilada há pelos menos uma década, e o Rei Francês (um pubescente Timothy Dalton) para uma calorosa celebração em The Lion in Winter. A adaptação da peça de James Goldman é filho de King Lear, mencionado num exercício anacrónico séculos antes de ser escrito, e irmão mais velho da série Succession que partilha o humor e a obsessão por poder, conferindo-lhe pouco valor documental. Por outro lado, o desconforto universal que nutre as tensões e conflitos familiares, estereótipo de uma linguagem de amor de ódio, onde são oferecidas lápides e intrigas palacianas. O guião permite a Hepburn e a O’Toole degladiarem-se com facadas emocionais oriundas de um estilo de representação clássico, acompanhado de uma encenação e cinematografia que compõem o maquiavelismo estático. The Lion in Winter presenteia-nos aprisionamento shakespeareano.

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A última prisão medieval deste Natal é Em Bruges. Ray (Colin Farrell) e Ken (Brendan Gleeson), assassinos contratados, são enviados para a cidade belga para aguardar o julgamento de Harry (Ralph Fiennes), após Ray ter cometido um crime fatal durante a sua primeira missão. Martin Mcdonagh explora a moralidade do mundo pós-moderno que desafia os valores tradicionais de certo e errado, no qual Bruges, repleta de simbolismo católico, em plena época natalícia, dá lugar ao purgatório de Ray. O protagonista partilha os pecados com a sua vítima: é temperamental e triste; e mau a matemática dado que falhou o alvo, cometendo não um, mas dois homicídios. O humor negro dos diálogos e a confortante interconetividade do argumento contrapõem a angústia da espera do juízo final de Ray. O seu constante desejo de resolução e a impossibilidade de escapar da cidade medieval entregam-nos uma ambiguidade temporal final, na última fala ‘I really, really hoped I wouldn’t die’, ao usar os tempos verbais no passado e no futuro. Em Bruges remete a personagem para um limbo sem destino.

Aos que persuadi a deixarem o frio de dezembro entrar pelas brechas das janelas, a convidarem o desconforto e a perturbar o estado febril imposto pelos compromissos festivos do final do ano, sugiro uma lista de filmes natalícios com escolhas pouco tradicionais e algumas arrojadas – tu, meu querido Eyes Wide Shut:

Eyes Wide Shut (1999) Realizador: Stanley Kubrick

The Lion In the Winter (1968) Realizador: Anthony Harvey

In Bruges (2008) Cineasta: Martin McDonagh

2046 (2004) Cineasta: Wong Kar-wai

Carol (2015) Cineasta: Todd Haynes

Tangerine (2015) Cineasta: Sean Baker

Fanny & Alexander (1982) Cineasta: Ingmar Bergman

The Phantom Thread (2017) Cineasta: Paul Thomas Anderson

The Apartment (1960) Cineasta: Billy Wilder

Brazil (1985) Cineasta: Terry Gilliam

Tokyo Godfathers (2003) Cineasta: Satoshi Kon