Hoje há uma “bandeira” da saúde mental por todo o lado. Em nome da defesa da normalização da saúde mental, aquilo a que temos assistido está longe de normalizar. É uma verdadeira banalização de um tema preocupante, de uma realidade grave e com consequências devastadoras a vários níveis.
A Organização Mundial de Saúde estima que mais de um bilião de pessoas sofra de perturbação mental, sendo que destas cerca de 70% nunca receberam tratamento e cuidados adequados. Os números oficiais podem ficar aquém da verdadeira realidade se atendermos que os mesmos dizem respeito a 2019, e que os estudos académicos nos dizem que a pandemia Covid-19 veio acelerar os processos de manifestação da perturbação mental, bem como a exacerbação dos seus sintomas. Isto significa que não foi a Covid -19 que debilitou as pessoas na sua saúde mental; contribuiu, mas não foi fator único, apenas veio tornar evidente um problema que já existia há décadas e continuava escondido. À pandemia, devemos então agradecer ter trazido à ribalta o tema da saúde mental, ter colocado o assunto na ordem do dia e em discussão.
Contudo, os holofotes sobre saúde mental não foram só coisas positivas. Tornou-o como uma moda da qual todos julgamos saber um pouco, algo verdadeiramente errado.
Não é pela proliferação desmedida de informação, muitas vezes pouco ou nada credível, que se normaliza a perturbação, não é desta forma que iremos eliminar os estigmas ou dotar as pessoas, a sociedade, de ferramentas para lidar com as questões de saúde mental.
Não é porque temos os media inundados de temas de saúde mental, estantes repletas de livros de autoajuda como se de receitas milagrosas se tratassem, ou influencers cheios de certezas que enchem Youtube, tik-tok ou instagram de conselhos sobre saúde mental partilhando experiências próprias, dos outros ou porque leram num livro, que estamos a aumentar a literacia em saúde mental.
Isto é uma verdadeira falácia, pois a sociedade consume estes conteúdos sem se questionar a credibilidade das fontes. Quem são estas pessoas? Que formação têm? Não, não somos todos especialistas de alguma coisa. E, viver uma perturbação mental não nos torna especialista, não nos dota de conhecimentos para dar bons conselhos. O pior disto tudo, é que quanto maior for a debilidade da pessoa, quanto maior for o seu sofrimento psicológico, mais fácil é agarrar este conteúdo sem questionar, conteúdo esse muitas das vezes errado.
Sim, é necessário falar de saúde mental; sim, é necessário debater o tema; e sim, é necessário dotar a sociedade de maiores níveis de literacia em saúde mental. Mas claramente estamos longe de estar no caminho certo. É necessário que quem partilha estes conteúdos tenha credibilidade, e não a credibilidade que o número de seguidores lhes possa dar, mas sim a credibilidade do conhecimento. A saúde mental é um problema real, é a terceira maior causa de incapacidade do mundo e a primeira causa de suicídio. Não é um tema simples de que todos possamos falar e aconselhar, é necessário ter consciência de que quando publicamos algo esse algo pode impactar alguém, é necessária responsabilidade para perceber que esse impacto pode ser positivo, mas também pode ter o efeito exatamente contrário.
De entre os perigos resultantes da enorme proliferação de informação por fontes pouco credíveis, destaco três que só por si justificam a preocupação patente neste artigo.
Primeiramente, vamos ao risco de autodiagnóstico. O consumo deste tipo de conteúdo, sem a orientação adequada de um profissional, pode levar ao autodiagnóstico errado. Muitas vezes os profissionais podem levar muito tempo até conseguirem definir um diagnóstico certo que corresponda exatamente ao quadro clínico de cada indivíduo. Mas em muitos dos conteúdos divulgados o diagnóstico é sempre simples, basta juntar um sintoma ao outro e já está. Rápido, sim, mas pouco eficiente. Mais, estes autodiagnósticos podem constituir um problema grave só por si. Podem resultar em duas situações prejudiciais: ou a pessoa se rotula com um transtorno que não tem, o que pode gerar ansiedade e comportamentos desnecessários, ou subestima a gravidade da sua condição real, adiando a procura por um diagnóstico correto e tratamento eficaz. Em ambos os casos, o impacto psicológico pode ser grave, agravando a saúde mental do indivíduo e aumentando o risco de crises mais sérias, como episódios de desespero ou até tentativas de suicídio.
Em segundo, indivíduos vulneráveis, ao procurarem apoio em fontes pouco fiáveis, mas de rápido e fácil acesso, podem ser expostos a conselhos equivocados ou simplistas. Muitas vezes, esses conselhos oferecem “soluções rápidas” para problemas profundos, como a ansiedade ou a depressão, sugerindo mudanças no estilo de vida, como a meditação ou hábitos de bem-estar (não que poderão não ser negativas, mas podem claramente ser insuficientes), sem ter em conta a complexidade e especificidade das condições de cada indivíduo. Cria-se a sensação de que, se resultou com alguém que até se admira, então pode resultar comigo. Isto pode conduzir a que a pessoa acredite que, porque tenta essas soluções e não vê melhorias, então o problema está nela, provocando frustração, culpa e agravamento dos sintomas. Pior ainda, a desinformação pode atrasar ou até impedir que a pessoa procure ajuda profissional, acreditando que os seus problemas podem ser resolvidos com abordagens superficiais.
E, por fim, o estigma. Não! Falar muito de saúde mental não é garantia de eliminar estigmas ou normalizar condições! A verdade é que o estigma em torno da saúde mental, uma das principais razões para a pessoas não procurem apoio psicológico especializado, pode ser exacerbado pela má informação disseminada, por exemplo, nas redes sociais. Quando pessoas não credenciadas falam sobre saúde mental de forma trivial, sem a seriedade que o assunto obriga, acabam por reforçar preconceitos e incompreensões sobre essas condições. A banalização das perturbações mentais leva a ideias erróneas, como por exemplo “toda a gente sofre de ansiedade”, o que claramente não é verdade, mas acaba por banalizar algo que pode ser complexo e perigoso para os indivíduos. Ao propagar informação errada, banalizando os temas, contribui-se para a perpetuação do estigma, dificultando ainda mais a aceitação de que os transtornos mentais são condições sérias que requerem tratamento. Isto conduz a que as pessoas que se encontram em real sofrimento devido às perturbações se sintam desadequadas, escondam os verdadeiros sintomas e não procurem ajuda com medo de incompreensão.
Em suma, é necessário normalizar os temas da saúde mental, é necessário terminar com estigmas associados à doença mental, e é necessário debater todos os temas associados a esta problemática social. É necessário e urgente implementar políticas públicas que o permitam fazer de forma eficiente. Mas é necessário fazê-lo de forma credível, com informação útil e passada por fontes de referência. Tudo o que seja em contrário, a proliferação de informação dúbia gera mais caos, não promove a literacia em saúde mental, apenas banaliza problemáticas que afetam uma grande percentagem da população, aumentando o estigma sobre a mesma.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
Uma parceria com:
Com a colaboração de: