Espero que o vosso Natal seja rico em afectividade e que todos desejem, como é moda, perto das 23h59 do 31 de Dezembro, um ano cheio, atulhado, pronto, que rebente pelas costuras de saúde para aqueles que vos aconchegam o coração e/ou supliciam o juízo.
Vou exactamente iniciar este texto por essa ânsia cega, desmedida, pseudo-altruísta de bem-estar do próximo, que vigorosamente se impõe depois dos excessos materiais egocêntricos e até alimentícios do Natal e arredores que são prósperos e contribuintes para um estado de saúde física e mental completo nesta altura. O que significa então este superchavão médico — “disease mongering”? Em termos mais transparentes que água da nascente da Serra da Estrela traduz-se basicamente em “comercializar” a doença através do alargamento dos seus limites com vista a lucro de prestadores de determinado exame/tratamento. Ora bem, é actualmente um dos tsunamis da medicina e responsável por transformar pessoas sãs em doentes etiquetados, desperdiçar recursos em questões vazias e originar dano quer por resultados limítrofes ou falsos positivos em exames, quer por tratamentos sem indicação formal e, muitas vezes, com efeitos adversos bem expressivos. Desta forma, a tendência será a prescrição de exames/medicamentos para doenças de gravidade cada vez menor até ao ínfimo tutano da simplicidade sana, eclipsando-se o cenário na sátira de Ray Moynihan do dia 1 de Abril de 2006 em que descreveu, pela primeira vez, a perturbação de deficiência motivacional, maleita que poderia afectar 1 em cada 5 empresários e obrigaria à toma de medicamentos para combater a preguiça aconchegante do sofá.
De facto, nós, os portugueses, somos dos maiores compradores de doença. Vou dar um exemplo claríssimo. Os programas da manhã. Desde há muitos anos que assistimos à inundação do daytime com anúncios de produtos que fazem maravilhas como o cogumelo do tempo, entre outros qualificados companheiros. Por outro lado, cada vez é mais rotineiro na consulta a indagação intempestiva sobre a eficácia deste ou outro suplemento, com relatos de magia ancestral contra quais a minha humilde ciência não pode vencer. A questão é: “vós achais que existe algum estudo que conclua que um homem ou mulher que tome diariamente cogumelos do tempo, comparando com outro(a) que não os tome, envelhece menos rapidamente?”. A resposta é um redondíssimo não. Para além desta propaganda do mercado dos suplementos alimentares, que é realmente lucrativa (atente-se ao caso da vitamina D que é um dos negócios mais bem sucedidos e vale biliões de dólares nos Estados Unidos da América), temos sido recompensados com visitas bastante regulares de diversos médicos nestes programas. Ora médicos de família, ora pediatras, ora especialistas de especialidades mais específicas.
Será que isto nos ajuda no trabalho? Não me parece, de todo. Devem estar a ponderar se o meu negativismo é mania-mania ou cepticismo muito ponderado. Sinceramente, se eu me transfigurasse em vós, ficar-me-ia pelo último. Vou esclarecer-vos com uma mini-revisão muita prática relacionada com o cancro da próstata. Corria o Setembro de 2019, com ou sem chuva não vislumbro agora, e no programa da manhã (penso que no canal no 3) falava-se sobre próstata. Em tom de brincadeira, para aproximação das classes sociais (na minha opinião claramente hiperbólica já que estamos a falar de saúde), ditou-se que seria importante o homem realizar, a partir dos 50 anos, o toque rectal e a medição do PSA (“…uma análise fundamental para perceber se há cancro na próstata ou não”).
População portuguesa, levantai os braços se me ouvis! Se há rastreio que ainda não demonstrou qualquer impacto benéfico significativo na mortalidade é o do cancro da próstata. Nas normas de orientação clínica portuguesas o que está explanado é que os riscos deste rastreio devem ser discutidos com o doente (ainda que seja herculeamente trágico transpô-los para linguagem simples) e que se deve tomar uma decisão partilhada.
A vítima somos nós que estamos de olhos esbugalhados a absorver toda esta manipulação matreira e dissimulada. Se isto não vos faz soar campainhas é porque andais desatentos meus caros.
Aliás, o caso é mais negro do que possam pensar. Outro dia, num supermercado deste país, estava eu pronto para levantar uma ou duas notas e deparo-me, na fase da pré-marcação de código secreto, com uma publicidade de um hospital privado que dizia: “Cancro da próstata: 90,9% dos doentes sobrevivem quando o diagnóstico é precoce”. Portanto, eles andam escondidos nos pingos da chuva e antes de vos lançardes nessa jangada perigosa, em caudais desconhecidos, falai com o vosso médico de família.
É sempre engraçado perceber que neste jogo do comércio da doença há normalmente uma trilogia de sabores — a ciência, a história e a vítima. A ciência é usualmente representada por alguém com suposto conhecimento científico, superior, que através do caminho da falácia da autoridade trará mais ou menos respeito e segurança. A história normalmente é contada por uma celebridade que nos diz muito ou pouco ao coração e nos faz reluzir que a esperança é realmente a última a morre, podendo quiçá (in)corrermos contra o tempo como Benjamin Button. A vítima somos nós que estamos de olhos esbugalhados a absorver toda esta manipulação matreira e dissimulada. Se isto não vos faz soar campainhas é porque andais desatentos meus caros.
Eu sei que é tempo de bacalhau mas isto, com raras excepções, acopla quase sempre uma pescadinha de rabo na boca. Vós sois assoberbados com informação inútil, que transpira uma doença que não sabíeis deter, ides procurar um médico que vos responda às dúvidas dilacerantes, este médico (se seguir o molde da medicina baseada na evidência de qualidade) desapontará as vossas expectativas, a insatisfação crescerá dentro de vós como um mal ardente, abalará os próximos contactos entre os dois e degenerará a relação médico-doente e procurareis resposta em realidades alternativas (homeopatia, práticas chinesas, etc) que vos ouvirão com olho sorridente e, através do além, serão o ponto de partida para novas desinformações ultra-dramáticas que reiniciarão a vida da pescadinha.
Respeitosamente, atenção respeitosamente, há muitos pais que julgam que o filho(a) sofre de uma perturbação de hiperactividade e défice de atenção, quando na pura e crua da verdade ele(a) sofre é de falta de educação.
Pensai que nós próprios somos óptimos em promover doença. Um doente, assim como aproximadamente 3/4 da população portuguesa, pode sofrer de dor lombar inespecífica mas, ainda assim, terá uma probabilidade baixíssima de ter uma patologia grave, do foro cirúrgico ou não. Contudo, enquanto eu disponho do meu tempo para tentar resolver a sua ambivalência relativamente à importância do benefício evidente de um estilo de vida mais saudável que inclua, por exemplo, actividade física regular, moderada a intensa, pelo menos 150 minutos por semana, o doente está vocacionado para a doença e, sem centralizar o que eu proferi, grita em sofrimento: “Ró- X!”.
De igual modo, hoje em dia, é também francamente comum a tentativa de banalização de doenças do foro psiquiátrico em crianças. Respeitosamente, atenção respeitosamente, há muitos pais que julgam que o filho(a) sofre de uma perturbação de hiperactividade e défice de atenção, quando na pura e crua da verdade ele(a) sofre é de falta de educação, ou seja, um rigoroso e meticuloso esquema de regras. A postura cada vez mais passiva e submissa dos pais faz com que os filhos não desenvolvam os mecanismos de coping, ou seja, ferramentas que lhes permitam combater adversidades, e, por isso, é também provável que prossigam com sessões infindáveis, de meses, de terapia ocupacional só para saber lidar melhor com a frustração.
É premente maior investimento no controlo sobre as matérias de saúde noticiadas. Em Portugal sítios como Scimed, com maior foco no público, ou Evidentiamedica, com maior foco nos profissionais médicos, são revoltos em qualidade, contudo, falta-nos alcançar um equilíbrio nos media. O HealthNewsReview.org nos Estados Unidos da América só nos primeiros 22 meses de actividade reviu 500 notícias e concluiu que transversalmente se falhou na discussão da qualidade da evidência científica, alternativas, custos e “peso” absoluto de benefícios e danos.
Em suma, andam a vender-nos doença, de mãos nos bolsos e a assobiar, e nós compramos barato, satisfeitos por descobrirmos uma suposta enfermidade que não alterará em nada a nossa vida futura, mas trará certamente uma ansiedade efervescente e demoníaca de resolver algo que, em benefício para a saúde, é um busilhão.