O ensino da anatomia na medicina não fica completo sem o estudo da anatomia real no cadáver. A dissecação é especialmente relevante para o ensino médico pois, não obstante o debate que existe sobre esta actividade, ajuda os alunos a evoluir cientificamente e socialmente, permite o desenvolvimento de empatia, confirma a realidade das estruturas, ensina a responsabilidade, ilustra como nenhuma outra a morbilidade e a mortalidade, permite um feedback táctil e expõe a variações anatómicas – todos somos, de facto, diferentes. Para os futuros médicos é ainda essencial apreender os valores éticos ligados à dignidade da pessoa humana, na sua dimensão corporal, mesmo para lá do momento da morte.

Os méritos da dissecação no ensino médico são antigos e foram ampliados pelas escolas médicas da antiga Grécia. O Acto Anatómico de Warburton, promulgado em 1832 pela câmara alta do parlamento do Reino Unido, veio estabelecer uma mudança de paradigma na aquisição de cadáveres humanos para fins de ensino, permitindo a doação do corpo em conformidade com os direitos humanos e excluindo o uso de cadáveres de criminosos executados para a dissecação. Após 1968, com o Anatomical Gift Act que estabeleceu nos Estados Unidos da América o enquadramento legal para a doação de corpos para a ciência e educação médica, há uma tendência global para o aumento das doações do corpo para fins de ensino e investigação.

Em Portugal, a Sociedade Anatómica Portuguesa, a mais antiga sociedade científica do âmbito das ciências morfológicas da Península Ibérica, em articulação com as escolas médicas portuguesas, promove a doação do corpo e a firme defesa das regras éticas e legais estabelecidas pelo Decreto-Lei n.º 274/99, de 22 de julho, que regulamenta a utilização de cadáveres para fins de ensino e de investigação científica.

Em 2022, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, recebemos 301 intenções de doação do corpo. Os dadores são mulheres e homens, de todas as condições sociais, saudáveis e doentes, crentes e não crentes. Com o seu gesto altruísta, permitem que a dissecação seja utilizada regularmente como uma parte fundamental no ensino médico pré-graduado, mas também no ensino pós-graduado, nomeadamente nas áreas cirúrgicas, onde o treino é complexo, envolvendo não apenas conhecimentos integrados de anatomia e clínica, mas também de instrumentação, dos procedimentos e das possíveis complicações. Numa linguagem contemporânea, poderíamos incluir a dissecação cadavérica no que se designa por uma experiência hands-on, que faz parte do léxico de ferramentas pedagógicas consideradas atuais. Talvez mais importante do que a semântica é a constatação de que a consequência a longo prazo da falta de conhecimento anatómico dada pela dissecação é a diminuição da qualidade dos cuidados médico-cirúrgicos.

É certo que as tecnologias digitais têm vantagens no ensino médico. Ainda assim, não é desejável que as soluções tecnológicas substituam por completo os métodos considerados mais tradicionais, antes os complementem, na aquisição do conhecimento anatómico, algum do qual apenas pode ser adquirido por meio da dissecação. A dissecação é uma metodologia centrada no aluno, em que a aprendizagem converge para o raciocínio clínico, e que para além disso influencia os valores éticos e permite o crescimento científico e pessoal.

A dissecação é um recurso de valor incontestável para o ensino médico que só é possível pela generosidade de quem se doou em vida para que depois do momento da morte pudesse, com o seu corpo, ensinar. Em nome dos alunos que iniciam o seu percurso académico e dos médicos que complementam a sua formação, obrigado. Porque doar é humano.

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