No sábado passado de manhã — como, por norma, faço nas manhãs de todos os sábados — fui ao supermercado Continente fazer as compras para a semana. Tenho carta de condução há sessenta e nove anos, tirada a 19/10/1955, mas por ter deixado de conduzir há já um bom par de anos, por aconselhamento médico e opção própria, é habitualmente o meu filho que faz o favor de aos sábados me vir buscar a casa. Ou então, na sua impossibilidade, chamo um táxi, como foi este o caso por ele ter tido necessidade de se deslocar no fim-de-semana a Lisboa.

Poucos minutos passavam das nove, telefonei para os táxis do Alto da Covas. O telefone tocou, tocou mas ninguém atendeu. Voltei a telefonar daí a minutos, nada. Tentei ainda uma terceira vez, mas não tive melhor sorte. Pesquisei o número de telefone dos táxis da Ladeira de São Francisco. Liguei para lá, fui atendido de pronto, pedi um táxi e poucos minutos depois estava à minha porta. A fisionomia do jovem que conduzia o táxi não me era de todo estranha. Depois de lhe ter dito para onde queria ir, fiz-lhe notar que o estava a conhecer de qualquer lado.

“Deve ser da Caixa Geral de Depósitos”, disse ele.

“Trabalha lá?”, perguntei.

“Sim.”

“Você deve ambicionar a ser milionário, a trabalhar dessa maneira”, atrevi-me a dizer.

“Ninguém fica milionário a trabalhar”, respondeu o taxista a sorrir, e acrescentou: “Gosto de fazer o que faço, gosto de conduzir, de ser prestável aos outros e, além disso e não menos importante, ainda ganho algum dinheiro”.

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“Faz você muito bem.”

Dali até chegarmos ao hipermercado, o motorista-bancário não parou de receber e fazer chamadas no telemóvel em alta voz, de pessoas que, como eu, precisavam de táxi. De clientes que, pelo que se podia depreender das suas conversas, teriam bem mais urgência em arranjar táxi do que eu, que apenas pretendia ir à compras e que, em caso de as ter de adiar para outra ocasião, nada de mal sucederia ao mundo.

Escutei, por exemplo, o tom preocupado de um homem que do outro lado dizia, com voz ofegante, que tinha urgência de um táxi para o levar ao aeroporto, e que não o estava conseguindo.

O taxista-bancário disse-lhe que aguardasse um momento, que ia contactar um colega a saber se se encontrava disponível e já lhe diria alguma coisa.

Infelizmente a resposta do outro taxista foi negativa, respondendo do lado de lá que se encontrava de cama, doente.

O taxista-bancário ligou a um outro colega e ainda a um terceiro, mas um e o outro se mostraram de momento indisponíveis, e ia já na quarta tentativa quando chegamos ao Continente.

“Dou-lhe os meus parabéns, meu jovem. Além de conduzir bem, é atencioso, educado e, sobretudo, é provido daquilo que tanta falta faz a tanta gente, sentido de humanidade”, disse eu, enquanto fazia o pagamento. E ainda acrescentei: “A massificação do turismo, deu nisto. Aqui há poucos anos, havia táxis a mais e clientes a menos. Ligava-se para a praça e havia sempre um taxista disponível. Agora é isto, precisa-se de um táxi para nos levar ao aeroporto ou ao hospital e não se encontra um que seja disponível, e quem sai lixado no meio disto tudo é o mesmo de sempre, o mexilhão”.

Desconheço se o homem em aflição por falta de táxis conseguiu chegar a horas ao aeroporto. Espero que se tenha conseguido desenrascar, como é condão dos portugueses.

Lembro-me de há uns anos, quando a Ryanair começou a despejar turistas ao preço da uva mijona no aeroporto das Lajes, o meu amigo António Fagundes me ter dito:

“Ramiro, parece que anda aí gente satisfeita com o turismo, que o turismo está na moda, que dá muito dinheiro e mais não sei o quê. Eu cá não embarco nisso. O turismo é bom para alguns, sobretudo para a hotelaria, porque para nós, que aqui vivemos e fazemos a nossa vida, os turistas, todos os turistas, não nos vêm trazer nada de bom, só carestia de vida e chatices. Chegará breve o dia em que muitos de nós, quando quisermos comprar no hipermercado uma boca negra para o almoço, olhamos para o preço e desistimos”.

Como o Fagundes estava coberto de razão. O turismo só veio lixar a vida à maioria dos habitantes cá da terra. Todos os turistas, sejam eles turistas ricos, cheios de pilim, com poder de compra muito superior ao nosso, que podem pagar à vontade trinta ou quarenta euros por uma posta de garoupa ou por um bife de lombo num restaurante caro pois isso são trocos para eles, sejam os turistas pé de chinelo, uns tesos ainda mais tesos do que nós, que compram numa loja uns papossecos e umas latas de sardinha para comerem no quarto e apenas nos deixam o lixo que fazem e nos entopem os caminhos.

Sei que isto para as luminárias da bolha mediática não são coisas bonitas de se ouvir, que isto não é ‘politicamente correcto’, cheira a linguagem a rondar a perigosíssima e condenável xenofobia e o detestável nacionalismo exacerbado que tem de ser censurada, castrada, cancelada, como o impõe a poderosa ‘agenda woque’ que, goste-se ou não se goste, quer-nos a todos de mãos dadas e a cantar canções lindas à paz à roda da fogueira da fraternidade e dessas coisas bonitas de se dizer para se ficar bem na fotografia com o nosso engenheiro Guterres da ONU a dirigir a orquestra, quer que todos nos abracemos num multiculturalismo glorioso, sem muros nem fronteiras, lindo de se ver, e mais todas essas novas estupendas formas de vida que as luminárias da bolha mediática e uma minoria de alucinados em obediência a estranhos poderes ocultos querem à força impor às populações, sei que isto não são coisas bonitas de se ouvir, dizia, sendo mesmo para a bolha mediática do ‘politicamente correcto’ que não ouve as conversas zangadas do povo muito irritado com o estado a que isto chegou são coisas detestáveis, mas o certo, e aqui é que dói, é que não deixam de ser verdade.

No sábado ia para comprar uma boca negra no Continente, mais para minha mulher que está doente, acamada, o que a restringe a apenas comer certos alimentos, como peixe, por exemplo, que lho levo à boca com um pouco de arroz, massa ou uma batata esmagada. Tive azar porque, mesmo a preços exagerados, às vezes exorbitante para carteiras pouco recheadas, não havia. Não havia nem boca negra, nem cântaro, nem muito menos garoupa. Não tive por isso outro remédio senão virar-me para a pescada congelada ‘de cozer’ do Cabo.

Não havia este tipo de peixe nas bancas de peixe do supermercado, peixe que, antes do turismo de massas, nós aqui estávamos habituados a comer a preços acessíveis às nossas bolsas, mas que, quase punha as mãos no fogo, não terá faltado em abundancia nos hotéis e restaurantes caros das ilha onde gente chique, a abarrotar de massa, alemães, franceses, nórdicos e outros, não dispensam o bom peixe e marisco do nosso mar dos Açores, e alguns, até, se poderão dar ao luxo de pagar 900 euros por uma garrafa de Barca Velha.

Mesmo nos sábados em que na banca do peixe do supermercado há à venda cântaro e boca negra, mas a preços proibitivos para as posses da maioria das famílias de classe média, a vida actual é muito exigente e o dinheiro não chega para tudo, observo, às vezes, que grande parte dos clientes nem se aproximam da peixaria, seguem adiante, e, não raro, alguns chegam-se, olham os preços, fazem contas de cabeça entre o quilo da boca negra ou do cântaro a 17,99 euros e o quilo da cavala a 4,88 euros, voltam a olhar a boca negra, levam a mão à boca, “Jesus tão caro”, abanam a cabeça, e pedem dois quilos de cavala.