Terá sido Elie Wiesel, um Tzadik, um dos trinta e seis Justos que, segundo uma antiga lenda talmúdica, salvam o mundo em cada geração? Nunca o saberemos porque, segundo a mesma lenda, ninguém os conhece e eles próprios ignoram que é a sua presença que mantém a Criação. O que sabemos de Elie Wiesel é que foi e permanecerá a eterna testemunha do Holocausto, assombrado pela memória, atormentado pela injustiça, obcecado pela interrogação permanente: como foi possível?
Elie Wiesel sobreviveu a Auschwitz-Birkenau, e aos seus campos de trabalhos forçados de Monowitz/Buna, e finalmente a Buchenwald, “capitais nocturnas de um reino estranho, imenso e intemporal onde, soberana, a morte terá tomado o rosto de Deus assim como os seus atributos sobre o céu e sobre a terra, até mesmo no coração dos homens”. Tinha 15 anos e viu serem engolidos pelas trevas a mãe, o pai, e uma irmã. A matrícula A-7713 ficará sempre gravada a fogo na sua alma: toda a sua obra será inspirada por esse ano maldito, embora apenas um livro, A Noite, escrito em 1958, narre o seu itinerário pessoal nos campos nazis e a morte do pai.
No mundo dos sobreviventes, Wiesel ocupa um lugar aparte. Nascido em Sighet, pequeno burgo judaico da Transilvânia nas montanhas dos Cárpatos, toda a sua infância é ritmada pela vivência tranquila do shtetl — essas aldeias de maioria judaica do leste europeu –, em conversação permanente com Deus: primeiro no Heder, a escola primária judaica, mais tarde na Yeshiva, academia de estudos talmúdicos onde estuda a Torá e o Talmude, embalado pelos contos e lendas hassídicas, sempre narradas em Iídiche. A criança que acompanhando a sua comunidade chorava a destruição do Templo e se iniciava nos mistérios da Cabala, como forma de apressar a vinda do Messias, descobre brutalmente o Mal absoluto e não esquecerá: “Não esquecerei nunca esses instantes que assassinaram o meu Deus e a minha alma, e os meus sonhos que tomaram o rosto do deserto”.
O seu rosto atormentado, os sulcos que retalham as suas faces, dizem-nos o que foi a sua vida: um combate permanente contra o esquecimento, essa “segunda morte”, uma batalha incessante contra a injustiça, um questionamento interminável. Como grande parte dos sobreviventes, Elie Wiesel sentia-se de alguma forma culpado por ter sobrevivido: Porquê eu? Porquê eu que nada fiz para o merecer? Desse questionamento angustiado nasce a determinação de ser a voz dos que já não estão, dos que beberam o cálice até ao fim. Mas não só. Da noite dos seus quinze anos, Wiesel tirou uma força pouco comum. A de testemunhar não só pelos mortos do seu próprio povo mas por todas as vítimas da opressão, do sofrimento e da injustiça. Auschwitz, crime único, atroz e sem perdão, é também, do seu ponto de vista, uma advertência à humanidade … E o Judeu, como expressão da condição humana levada ao extremo.
Elie Wiesel foi toda a vida apoiante de Israel, embora se considerasse sempre como um judeu da Diáspora e um sionista religioso: “Não moro em Jerusalém, mas Jerusalém vive em mim”. Na sua entrevista a Brigitte Fanny Cohen, confessa no entanto ter algum sentimento de culpabilidade em relação a Israel. “Sinto-me incompleto porque não vivo lá”. Para ele, Israel incarnava o destino judaico constantemente sob ameaça de destruição: em 1967, quando as feridas do Holocausto ainda sangravam e o mundo judaico revivia o temor do extermínio, Wiesel vai a Israel em plena guerra como forma de expressar a sua solidariedade profunda.
Para um homem profundamente religioso como era Wiesel antes do Holocausto, o “silêncio de Deus” na época é uma questão lancinante que percorre muitos dos seus livros. Mas esta questão nunca é resolvida pela perda da fé. Para Wiesel a dúvida resolve-se pelo questionamento, pelo debate intimo, através da conversação milenária que os judeus entretêm com Deus. Antes do Holocausto, a religião era para ele aceitação; depois de Auschwitz é sinónimo de revolta. À boa maneira judaica, no seguimento de Abraão, Moisés ou Job, o dialogo com o divino inclui a discussão, o afrontamento e desafio: Acreditar em Deus, apesar de Deus; “Só o homem que sabe reconhecer o Deus oculto pode exigir a sua “desocultação”, escreveu Levinas. Wiesel subscreve: “Com ou contra Deus, mas nunca sem Ele”.
Numa conferência dada em Nova Iorque em 1975, publicada por Brigitte F. Cohen, Wiesel conta que um dos trinta e seis justos fora a Sodoma tentar salvar os seus habitantes do pecado e do castigo. Andara noite e dia por toda a cidade pregando contra a avidez e o roubo, a mentira e a indiferença – em particular contra a indiferença. Mas ninguém o ouvia e o mal continuava a ser perpetrado, até que uma criança, com pena dele, perguntou-lhe: “Pobre estrangeiro, porque gritas? Dia após dia, ouço-te, vejo-te, e ninguém te escuta, ninguém te liga. Não vês que é sem esperança? “Eu sei”, responde o justo: “No início eu acreditava que podia mudar os homens. Mas hoje sei que não o conseguirei. E se grito ainda hoje, se grito com uma convicção ainda maior, com mais fervor, é para que os homens, a mim, não me possam mudar.”
Quem sabe, talvez Elie Wiesel tenha sido o Justo da Sodoma dos nossos dias …