Morreu há dias o engenheiro Rogério Martins que, entre outros trabalhos da vida — como docente universitário, empresário e gestor –, foi secretário de Estado da Indústria no primeiro governo do professor Marcello Caetano.

Estive no Terreiro do Paço quarenta meses, desde a primavera promissora de 1969 até ao verão encalmado de 1972; por mim sempre achei que o Governo não existe para a manutenção do «status quo», mas para a dinamização da sociedade, de modo a torná-la mais justa, mais aberta, mais progressiva, mais racional, mais confiante.

Foi então que o conheci, através do saudoso Dr. José Guilherme de Mello e Castro, que assisti, como jovem apoiante à “Ala Liberal” da Assembleia Nacional, logo no início da imperfeita “Primavera Marcelista”. Eu regressara da Guiné, depois de ali cumprir uma comissão de serviço militar como alferes miliciano. A razão de, acabadinho de chegar, ter logo entrado a trabalhar com pessoas que procuravam uma mudança, ou progresso evolutivo do regime estabelecido, deve-se à convivência mantida, desde os tempos de faculdade e de JUC, com movimentos e tertúlias de inspiração católica que, sozinhos ou com outros sectores religiosos e laicos (lembre-se a experiência de O Tempo e o Modo, conduzida por António Alçada Baptista, aliás outro homem da Covilhã, como Mello e Castro) desejavam, como Rogério Martins acima diz, “a dinamização da sociedade portuguesa, de modo a torná-la mais justa, mais aberta, mais progressiva, mais racional, mais confiante.

Fui, com muitos amigos, desde monárquicos a socialistas, um dos subscritores, em 1964, da célebre declaração “dos 101” número de católicos que a assinaram. Com Rogério Martins trabalhei três anos, dos meus 27 aos 29, na qualidade de assessor para as relações internacionais, que me dava, por inerência, um lugar de vogal na Comissão Interministerial de Cooperação Económica Externa (presidida pelo embaixador Ruy Teixeira Guerra), nas missões ministeriais à EFTA (conduzidas pelo Secretário de Estado do Comércio Valentim Xavier Pintado) e, ainda, o de delegado de Portugal ao Comité de Indústria da OCDE.

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Refiro agora tudo isso, porque quase meio século mais tarde, e depois de tanto ter percorrido os continentes do mundo, é nesse período que encontro as raízes mais fundas da minha consciência política actual. Era ainda muito novo, tive a graça de me ter encontrado entre gente de bem, e altamente competente nas respectivas áreas profissionais, de uma geração anterior à minha, brilhante, até com grande prestígio internacional – como na altura pude verificar – que hoje já poucos conhecem. Será bom recordá-los, porque também profeticamente os seus desígnios e exemplos continuam actuais em nossos dias. Por isso trago aqui alguns testemunhos do próprio Rogério Martins.

Ao seu primeiro livro de discursos e outras intervenções públicas deu Rogério Martins o título Caminho de País Novo. Os textos ali recolhidos vão de Março de 1969 a Junho de 1970, e reflectem bem a consciência das reformas necessárias ao desejável desenvolvimento do país, e das dificuldades e obstáculos que encontrariam, bem como a esperança de as realizar.

Penso que Portugal neste meado de 1970 se encontra na exacta situação de o desafio a que está submetido ser tão imperioso e tão grave, que é profundamente estimulante, sem vir a tombar no extremo de ser excessivo; apela para toda a nossa energia, imaginação, imaginação, entusiasmo e capacidade de organização e realização nacionais, mas não é paralisante nem por isso fatal; tem de ser tomado tremendamente a sério, mas é respondível. A resposta é caminho de país novo.

Há coisa de dez anos atrás, isto é, quarenta depois de escritas estas palavras, o Rogério, saudoso ainda, dizia-me: «Meu caro Camilo, apesar de tudo, ou talvez por isso tudo, naquele tempo tínhamos esperança!»

Infelizmente, aqueles tempos de transição naufragaram, semeámos ventos e colhemos tempestades… Profeticamente, em edição de autor, Rogério Martins publicava, em 1973, o seu Tempo Imperfeito, dedicado expressamente a todos os que comigo quiseram trilhar caminho de país novo. Acrescentou-lhe, no exemplar que me ofereceu, uma extensa dedicatória manuscrita, que hoje ainda profundamente me comove. A família política a que pertencíamos tinha ainda raízes bem profundas no universalismo cristão. A Tempo Imperfeito vou buscar trechos do discurso que o Rogério proferira, em 4 de Dezembro de 1964, na inauguração da “Motra”, unidade industrial da Siemens no Sabugo, na presença do Presidente da República, dos ministros da Economia e das Corporações, do Embaixador da República Federal Alemã e do próprio Peter von Siemens:

Cada empresa nova, porque o é, tem assim um papel muito importante a desempenhar, ao forçar as outras a renovarem-se; que aquelas a quem esta nossa atitude possa ter parecido muito dura me desculpem pessoalmente – mas se lembrem de que só sobrevive quem tem a dureza de se preparar para isso. E afinal, a sobrevivência das empresas no agitado mar de competição moderna é talvez a primeira condição para que desempenhem a sua função social. Uma empresa é, no plano humano, uma comunidade; as leis da justiça inerentes à vida comunitária bem ordenada têm de viver nela; isso só acontece se se institucionalizarem, e se os colaboradores na obra comum sentirem a segurança da continuidade. Este deverá ser o verdadeiro objectivo económico do empresário : conseguir lucro para que por ele assegure o permanente rejuvenescer da empresa, e desse modo a sua permanência para além das vicissitudes económicas ou sociais; conseguir lucro para que a equipa que com ele trabalha possa manter-se, na livre adesão a um esforço comum progressivamente melhor organizado; e progressivamente melhor recompensado não só no plano das retribuições materiais, mas também, senão sobretudo, no das oportunidade concedidas ao desenvolvimento da personalidade, ao ascender a graus crescentes de realização pessoal, de aperfeiçoamento pessoal e humano.

[E o bom Rogério, engenheiro e gestor então ao serviço da Siemens, grande empresa alemã – cujo idioma ele dominava, tal como mais outros sete, incluindo o catalão, além do português – ali bem visivelmente homo oeconomicus, diante das personalidades presentes, recorre ao papa João XXIII, o do Concílio]:

«Uma concepção humana da empresa tem de salvaguardar, é certo, a autoridade e a necessária eficácia própria da unidade de direcção; mas não pode legitimamente reduzir os seus colaboradores de todos os dias aos papel de simples executores silenciosos, sem nenhuma possibilidade de fazer valer a sua experiência, inteiramente passivos quanto às decisões que dirigem a sua actividade». Nesta casa faz-se o possível por que esta sábia reclamativa do bom Papa João seja a norma corrente do trabalho de todos.

Rogério Martins era um liberal, no sentido de defensor da liberdade de iniciativa económica, da desburocratização do Estado, da alegria de inovar e de propor andamentos novos. Como tal, incarnou bem o desejo de espaços e ares mais limpos, de mais confiança na inspiração apoiada na prudência segura, na competência técnica, ponto em que muito insistia. Lembro um passo do discurso que proferiu em 7 de Abril de 1970, em Madrid, num almoço oferecido pelo ministro espanhol da indústria, Lopez de Letona: Já o Evangelho condena os que constroem na areia, e a nós, homens calejados na indústria, mais do que a ninguém repugna ignorá-lo. Tampouco esqueçamos que foi ele quem acabou com a legislação e a política do corporativo colete do condicionamento industrial, corajosamente enfrentando poderes e interesses estabelecidos. Mas também recordo o que ele disse no Colóquio sobre Política Industrial, realizado em Lisboa, em Fevereiro de 1970, acerca das condicionantes positivas do desenvolvimento económico português e as nossas vantagens competitivas, negando qualquer prioridade à opção por um baixo teor dos salários:

Este é um ponto particularmente importante, que se inscreve aliás entre os objectivos formal e solenemente reconhecidos pela Nação como prioritários nos planos de fomento : a melhor redistribuição do rendimento. O que isto significa é que o aumento dos salários deve não só acompanhar o aumento de produtividade mas tenderá normalmente a ultrapassá-lo, vindo correspondentemente o lucro empresarial, por unidade produzida, a diminuir; para manter o valor global de lucro; e para o aumentar, o empresário terá de aumentar o número de unidades produzidas; a pressão exercida por este factor social vai assim convergir com as de origem técnica, obrigando a aumentar a dimensão produtiva que exigirá escoamento em mercados maiores. Assim, ao mesmo tempo que a fracção do rendimento nacional imputável à remuneração do trabalho tende a crescer para níveis próximos dos centro-europeus, concomitantemente se virá a assistir à diminuição da parcela de custo unitário que remunera o capital empresário. Em vez de vender cem ganhando por unidade dez, o industrial terá de vender mil, ganhando por unidade um: assim se traduz na forma simplificada de «slogan» este factor poderoso para a modernização industrial.

Isto foi afirmado publicamente, num congresso de empresários industriais, há quase meio século, por um secretário de Estado da Indústria do governo de Marcello Caetano. A recordação de grandes figuras do nosso passado deve servir-nos, como a lembrança dos santos do Céu, para ajudar a pensarmos na vida. Rogério Martins não precisa de que eu lhe escreva estas linhas. Nós é que precisamos de pensar com ele no caminho de país novo que queremos percorrer.

Antigo assessor de Rogério Martins quando este foi secretário de Estado das Indústria