Assentemos em alguns pontos: o eleitor é distraído, a democracia equívoca, a economia contraintuitiva, os ricos sanguessugas e parasitas e as burocracias do poder opacas.

Distraído porque a política interessa a poucos. As bolhas das redes sociais, os campus das universidades, e as redacções dos jornais e televisões estão cheias de gente que julga que não é assim, mas é. A notícia do político que beneficiou abusivamente uns camaradas, do outro que deu uma golpada ou daqueloutro que empregou a família não comove ninguém, senão para confirmar o cidadão cínico, que se imagina sábio, na ideia de que eles estão lá para se encherem e que, no fundo, são todos uma cambada de ladrões. E a indignação fica guardada para o que se deixa apanhar na malha da Justiça. Ai dele, que além de vigarista era burro, deviam era fechá-lo numa masmorra qualquer, e atirar fora a chave.

A democracia como a entendem os meus concidadãos não aguenta explicações muito sofisticadas, que contemplem direitos do indivíduo que a maioria não tenha o direito de ofender. Pelo contrário: a ideia de que uns caramelos defendam coisas diferentes das que a maioria esmagadora subscreve só é aceite se os caramelos em questão pertencerem a uma tribo reconhecida e aceite pela comunidade, em nome do convívio das tribos. E as minorias gozam de tantas mais defesas – ia a dizer privilégios – quanto mais aguerridas e quanto mais subscrevam o progressismo, entendido como o aumento dos direitos materiais, como se os que beneficiam uns não implicassem quase sempre obrigações para outros. A menor minoria de todas, que é a pessoa, é o parente pobre desta engrenagem – ai dela se não pertence a nada, nem ao povo trabalhador, nem ao lobby gay, nem ao sindicato, nem ao clube, nem à associação patronal, nem ao partido, nem é cigano ou preto, nem, nem.

Os ricos começam por ser suspeitos porque, como é geralmente sabido, para o serem ou herdaram ou aldrabaram. Ora, em herdar não há mérito; e em vigarizar também não, muito ao contrário, como se prova pelo facto de a maioria das pessoas que não são ricas ser perfeitamente capaz, se o fosse, não apenas de dar provas de grande generosidade, mas também de evidenciar um gosto no consumo, uma discrição no comportamento e um discernimento na hora de investir muito superiores.

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Aliás, a necessidade de ricos é um lero-lero. É mais ou menos consensual que a gestão privada não é superior à pública: não vão todos os dias à falência empresas privadas, lesando o fisco, os fornecedores e os próprios trabalhadores? E não tem o capitalismo crises cíclicas, implicando sempre destruição de valor? Se a justificação para a existência de ricos for o investimento, então não se percebe por que razão não fica este limitado à esfera pública, onde semelhantes males sempre se podem evitar.

É certo que em todos os pontos em que esta experiência foi (e continua a ser, naqueles de onde só não foge quem não pode ou está no poder) ensaiada o resultado foi escassez e travagem do progresso. E esta infeliz constatação levou a que lúcidas pessoas de esquerda (isto é, as que entendem que na igualdade está a felicidade) tenham congeminado o melhor de dois mundos: para investir criam-se empresas, que têm personalidade jurídica diferente da dos seus proprietários; estas personalidades colectivas não comem, não bebem, não têm amantes, mas taxam-se como se fossem pessoas, o que permite engordar o que as pessoas reais pagam mas sem que se apercebam – a empresa, se puder, vende mais caro porque existe para distribuir lucros ou dividendos e investir, não para pagar impostos, os clientes pagam, e no que pagam está ínsito outro imposto, esse visível, que é o IVA (além de outros impostos indirectos e alcavalas sortidas, dependendo do bem ou serviço). No que os proprietários recebem há um imposto à parte – entre nós, até ver, 28%.

A ideia de taxar a empresa assenta no pressuposto de que a punção sai dos bolsos dos proprietários, e seria portanto uma falsificação da taxa que realmente incide sobre os rendimentos daqueles. E em alguma medida isto poderá suceder, mas, sendo a natureza humana o que é, é mais provável que quem resulta ofendido seja o cliente, que paga mais, o trabalhador, que recebe menos, e a capacidade de investimento com recursos próprios, que fica diminuída.

Esta opacidade, tão espessa que o comum dos mortais acha que são as empresas, e não os seus clientes (ou os trabalhadores, que poderiam ser mais bem remunerados), que pagam o IRC, como se entende? A explicação é simples: nem sequer o IVA, cuja taxa figura nas facturas, desperta atenção. A margem do fornecedor, que é sempre, por comparação, ridícula, é que suscita comoções, como se viu por estes dias com o preço dos combustíveis. Isso e a sua real ou putativa riqueza que, se for visível, logo é objecto de cobiça: então esses patifes do Pingo Doce têm milhões, é? Ora, deviam fazer como os do Continente, que também têm mas ao menos sustentam um jornal progressista (e aliás a esses dois grupos Nosso Senhor ainda os vai castigar, que com Lidls, Intermarchés, Mercadonas e o mais que se verá, um destes dias, se não se põem a pau, alguns deles ainda vão mazé para aquela coisa dos PERs, ou lá o que é).

Temos portanto que na fiscalidade o que parece não é. E na economia também: se eu, no caso de ter acne e o mais remoto respeito por comunistas e frei Anacleto Louçã, acreditasse que no dia em que toda a riqueza fosse igualmente distribuída acabava a pobreza, não andaria longe do que, à escala nacional, acredita a maior parte do eleitorado. O que ajuda a explicar (isso e não a suposta incapacidade das elites, mesmo que exista) o atraso relativo do nosso país.

Pois bem: muitas multinacionais, com trocas e baldrocas (o que, na gíria, se chama engenharia financeira), baldam-se aos impostos. E alguns países, e não apenas aqueles onde se localizam offshores, ajudam-nas nesse meritório esforço. Ora isto não pode ser. E não pode por causa da concorrência desleal: dos países, que atraem empresas, ou melhor, sedes de empresas, só para estas aproveitarem taxas baixas de imposto, mas sem benefícios reais para as populações locais (dizem economistas de nomeada, uma variedade de pessoas que tem excessiva inclinação para expectorar quantidades prodigiosas de asneiras); e das próprias empresas, a quem sobram os meios que faltam às menos engenhosas na trapaça legal, ou simplesmente mais pequenas.

Daí que haja uma universal satisfação com uma taxa mínima de 15% de IRC para empresas multinacionais com a qual esta tia apparatchik rejubila, falando em “momento histórico” e numa “questão básica de justiça”.

Nem o momento, nem a taxa, nem ela são históricos, sequer de rodapé, e a justiça pouco tem a ver com isto. Mesmo que outros burocratas supranacionais, como este Mathias Cormann, também embandeirem em arco e dificilmente apareça algum prócere que não se junte ao coro. E estou certo que Marcelo, se ainda o não fez, haverá de saudar este grande passo, para o qual deve ter contribuído pelo menos um português (há sempre pelo menos um, nem que seja a servir cafés), assim como Guterres (ainda que neste caso não se esteja bem a ver qual será o efeito positivo que a medida tenha no aquecimento global, que não o deixa dormir) ou Costa, este porque a União, em que ele tem, segundo a comunicação social portuguesa, uma voz preponderante, deu um precioso contributo para este feliz desenlace.

Sucede que combater a concorrência desleal é meritório. Mas se o objectivo fosse apenas esse (e admitindo, o que apenas concedo para efeito do que digo a seguir, que a competição fiscal entre países não é uma boa defesa dos contribuintes, e que esta história da eliminação das vantagens relativas de uns países sobre outros não é uma porta que se abre para todo o tipo de efeitos perversos) então o aumento de receitas previsto iria permitir o correspondente alívio de outros impostos. A boa da Ursula, ou o belga-australiano com mau aspecto que preside à OCDE, ou a turba dos dirigentes que já se pronunciaram ou virão a pronunciar-se, porém, disso não falarão.

Com boas razões. Um economista de quem sou amigo disse-me há tempos: Epá, as pessoas em todo o lado pedem mais e mais coisas ao Estado e o dinheiro de algum lado tem de vir.

A mim parece que o dinheiro que vier das multinacionais, se esta loucura mansa for avante, aquelas cobrarão, de uma forma ou de outra, aos seus clientes. E já me estou a ver a pagar muito mais pelo programa de tratamento de texto que estou neste momento a usar e por mais um sem-número de coisas que agora não descortino.

Aqueles, e são a maioria, que não pagam IRS, ficarão contentes. Isto de impostos sobre os ricos é mais do que justo. Aplaudirão portanto nas redes sociais, pertencentes a multinacionais, às quais acedem em telemóveis produzidos por outras multinacionais. Elas é que vão encostar a barriga ao balcão – elas, não eles, acham.