Sou um homem de ciência e de fé. Mas hoje falarei apenas de ciência. E assim o farei porque é importante que estejamos todos conscientes da situação actual da Covid-19 e perceber porque estamos entre a espada e a parede.
Taxa de mortalidade
O primeiro ponto e, provavelmente o mais importante para toda a humanidade, para todos os portugueses e também para mim, é saber qual é a taxa de mortalidade real da Covid-19. O caso de Itália assustou-nos a todos com taxas de mortalidade acima dos 10%, mas a realidade é que a taxa real deve andar à volta dos 0,7%, como apontado por vários estudos.
Imaginemos então uma aldeia de 200 pessoas onde vivem 45 crianças/adolescentes e 37 idosos acima dos 70 anos. Tipicamente, num ano morrem 2 idosos. O Covid-19 poderia levar a mais uma morte.
Pelos estudos também se infere que abaixo dos 50 anos é dez vezes mais perigoso morrer de qualquer outra causa do que da Covid. Dos 50 aos 60 anos, é três vezes mais perigoso morrer de qualquer outra causa do que da Covid.
Por outro lado, 25% dos falecidos tem um problema de saúde, 26% tem dois problemas de saúde e 49% tem três problemas de saúde. Os problemas de saúde geralmente identificados são problemas de coração, pressão arterial elevada e diabetes. Somente 0,8% das mortes ocorreram sem nenhuma condição prévia de saúde. Portanto, aquele idoso que morreu de Covid, uns dos 37 idosos de uma aldeia de 200 pessoas, é provavelmente um idoso com dois a três desses problemas.
Estratégias
De modo a podermos evitar que muitas pessoas morram, temos ouvido falar da estratégia de achatar a curva. Qual o objectivo? Pretende-se evitar sobrecarregar o SNS e assim evitar mortes por falta de cuidados intensivos. Portugal teve muito sucesso porque ficámos a cerca de 55% da nossa capacidade. Ultrapassar esta linha pode significar duplicar a taxa de mortalidade. Mas esta estratégia não resolve o problema, excepto se quisermos esperar por uma eventual vacina durante um ano em confinamento. A salientar que um dos benefícios desta estratégia foi preparar-nos e perceber melhor este vírus.
Os custos colaterais
Para Portugal, estima-se pelo menos uma recessão de 6,5% do PIB por cada período de 30 dias de confinamento, o que corresponde a cerca de 9 mil milhões de euros por mês. Em termos de emprego, já há mais 75 000 desempregados em Abril 2020 quando comparado com Abril de 2019, prevendo-se que este valor duplique. De destacar que as pessoas desempregadas são tipicamente pessoas com menor rendimento que normalmente trabalham em áreas em que o teletrabalho não é possível. Além da pobreza e exclusão social actual, estamos a limitar o contacto entre as pessoas. Se é verdade que queremos salvaguardar a vida dos nossos idosos, estamos também a privá-los de estarem com a família. Muito deles vivem sozinhos e estão ainda mais isolados. Há poucos meses, aprovámos uma lei da eutanásia em prol da liberdade individual do cidadão. Não estaremos nós agora a fazer exactamente o contrário? Quem somos nós, como sociedade, para impedir que as pessoas nos seus últimos anos possam viver perto dos seus?
O equilíbrio das medidas
Existe, em geral, um consenso que estamos a salvar vidas e que por isso estamos a fazer o que deveriamos fazer. Mas quantas vidas estamos a salvar? Quantas vão inevitavelmente morrer, tendo em conta que o vírus não vai desaparecer? A Suécia optou por suavizar o confinamento e deixar restaurantes a funcionar com algumas restrições. Ao contrário do que se diz, o caso da Suécia não está a correr assim tão mal como pode parecer. Sem terem medidas de confinamento obrigatórias e extremas, estão com número de mortes por cada 100 000 habitantes bem abaixo da França, Espanha e Bélgica.
Mas, se Portugal tivesse tido a mesma trajectória que os piores focos de contágio, como Nova Iorque ou Chelsea em Boston (com medidas de confinamento tardias), teriam ocorridas 20 000 mortes devido à Covid-19. Sem nenhum confinamento, este valor poderia subir para 50 000 mortes. Se esperarmos pela vacina durante um ano, seriam “somente” 11 000 mortes. Portanto, um confinamento de um ano corresponde a salvar 39 000 vidas, a diferença entre o valor máximo de 50 000 mortes e o valor mínimo de 11 000 mortes. Tendo em conta a perda de PIB para o país durante um ano, estamos a pagar 2,7 milhões de euros por cada vida salva.
Será que do ponto de vista ético podemos dizer que é demasiado para salvar uma vida humana? A questão não é essa. A questão é se temos capacidade. Assumindo cerca de 2 milhões de famílias que pagam impostos em Portugal, estamos a falar de cada família pagar cerca de 54 000 euros para esperar pela vacina. Se aceitarmos um aumento de 20% nos impostos, precisamos de cerca de 45 anos para conseguir pagar todo este valor, diminuíndo obviamente a despesa na saúde e deteriorando as nossas condições. Cada mês de confinamento equivale também a cerca de 3,6 milhões de cirurgias que teremos que abdicar – 7 vezes mais cirurgias que há num ano em Portugal. Depois vem a difícil questão: Será que é razoável comprometer o futuro dos nossos filhos e dos nossos netos para prolongar a vida dos nossos pais e dos nossos avós de cerca de 1, 2, 4 anos? Não pretendo dizer o que está certo ou errado, mas somente trazer consciência do preço das nossas boas intenções.
Qual é que é o equilíbrio certo? Se esperarmos até à vacina, vamos comprometer o nosso futuro por décadas e nem penso que seja possível suportar financeiramente este cenário. A Suécia, muito criticada por outros países europeus, preferiu encarar o problema de frente e apostar numa imunização da população à custa de mortes que iriam acontecer de qualquer maneira. Estaremos prontos, enquanto sociedade, para deixar morrer as pessoas? Mas não é o que já fazemos com a pneumonia? Nunca alguém sugeriu paralisar a economia para salvar as cerca de 6000 pessoas que anualmente morrem dessa doença. Nem nunca ousámos aumentar significativamente a taxa sobre o açúcar, ou criar uma sobre o sal e as gorduras para salvar as cerca de 35 000 pessoas que morrem por ano em doenças do coração. A sociedade faz o seu melhor para aumentar a esperança de vida das pessoas e melhorar a sua saúde. Mas nunca o fez de forma desproporcional. Alguns dizem que a vida não tem preço e até que estão dispostos a pagar 2 milhões de euros para salvar os seus pais. É uma opção válida. Mas essas mesmas pessoas não poderão queixar-se, no futuro, do aumento de impostos e da diminuição muito significativa da qualidade do SNS nos próximos 10 anos.
Na verdade, estamos entre a espada e a parede. Se nada fizermos, teremos que assistir à morte de alguns dos nossos entes queridos e provavelmente sem terem a devida assistência médica. Se ficarmos em confinamento, estaremos a comprometer a saúde e a vida dos nossos filhos e dos nossos netos. E a verdade é que não existe um ponto de equilíbrio. Qualquer solução intermédia é muito má nos dois sentidos. Vamos sempre ter uma grande recessão e vamos sempre ter muitas mortes. E esse é o grande dilema do governo e de toda a nação. Uma situação extremamente difícil.
A realidade
Finalmente, um último aspecto que considero dever ser também abordado. À data de escrita deste artigo e desde o início de 2020, morreram 3,2 milhões de pessoas à fome no mundo inteiro. Em 2007, a União Europeia contribuíu com cerca de 1000 milhões de euros em ajuda humanitária, ou seja cerca de 2 euros por pessoa. E agora estamos a contribuir com 54 000 euros por família, ou 10 000 euros por cada português para salvar 39 000 vidas. Percebo que queiramos proteger mais os nossos concidadãos, mas esta diferença é completamente desproporcional. Pior ainda, são as mortes adicionais que irão acontecer nos países mais pobres devido à crise económica.
A escolha
O pior cenário aqui apresentado é triste, anómalo e forte. Num círculo de 200 pessoas nossas conhecidas, dois idosos vão morrer de causas comuns e um por causa da Covid-19 num universo de 37 idosos. É triste morrer este idoso adicional. Mas não é catastrófico. Catastrófico é o cenário económico e social que estamos a viver e que vai piorar. A crise vai atingir mais fortemente os que tem menos rendimentos, ou seja, os da classe operária, da restauração e do turismo e que não podem fazer teletrabalho. O fosso entre pobres e ricos vai aumentar.
Os actos heróicos para salvar as vidas das pessoas são nobres e bem intencionados. Mas deixemo-nos de novelas de Dom Quixote e olhemos para a dura realidade. Não há dúvida que estamos entre a espada e a parede. Mas não é uma espada apontada ao nosso coração. É uma espada apontada à nossa mão, ou ao nosso olho. Mais vale perder um destes membros já e seguir em frente, do que ficarmos presos à parede morrendo lentamente à fome.
Nota: O artigo mais completo com referências e explicações detalhadas encontra-se aqui.