No meu artigo de maio de 2020, estimei que, para Portugal, esperar pela vinda da vacina implicaria um mínimo de 11 mil mortes com confinamento e um máximo de 50 mil mortes sem medidas nenhumas. Atingimos cerca de 17 mil mortes com a implementação de dois confinamentos severos. Apesar deste valor parecer enorme, em termos médios, as mortes Covid acumuladas por habitante em Portugal estão dentro da média dos países europeus.

Por outro lado, estimei que o IFR (Infection Fatality Rate, ou seja quantas pessoas morrem por cada 100 infectadas) estaria em cerca de 0,7%, valor esse em linha com vários estudos (dependente de fatores demográficos).

Referi também que vários especialistas previam uma recessão económica bem maior que a de 2008/2010. A recessão de 2020 fixou-se em 7,6%, ou seja o dobro desta última.

No entanto, houve duas agradáveis surpresas que eu não previ. A primeira foi o suporte financeiro na forma de moratórias e a decisão da União Europeia de injectar dinheiro na economia. No entanto, como o dinheiro não nasce do nada, continuo a acreditar que teremos de qualquer modo um enorme impacto financeiro de longo prazo através de impostos, inflação e decréscimo na capacidade do SNS do nosso país. A segunda surpresa foi a criação das vacinas bem antes do tempo previsto. Isso tudo fez com que o impacto económico imediato tenha sido bem menor do que eu esperava. No entanto, devido à pandemia, só em Portugal, 400 mil pessoas caíram abaixo do limiar da pobreza. É demasiado e veremos se não vai aumentar.

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Prioridades

Se este valor é assustador (e pouco noticiado na comunicação social), o número é ainda maior a nível mundial. A OXFAM estima que 40 milhões de pessoas no mundo inteiro passaram por períodos de fome extrema devido ao impacto económico da pandemia. De Covid, na União Europeia, morreram cerca de 350 mil pessoas em 2020. Por outro lado, todos os anos morrem cinco milhões de crianças com menos de cinco anos. Considerando que dois terços dessas mortes poderiam ser evitadas com medidas de baixo custo (mil euros anuais por criança já com custos de intermediários), bastaria cada Europeu pagar cerca de 30 euros por ano para as salvar. Recordo que no meu artigo anterior, estimei que cada Português terá que pagar cerca de 10 mil euros (devido à recessão económica criada pelos confinamentos) para salvar cerca 40 mil pessoas mas que paga somente dois euros por ano em ajuda humanitária. A Europa nunca quis aumentar a sua solidariedade de dois euros para 30 euros por habitante para salvar 5 milhões de crianças mas está disposta a pagar 10 mil euros para salvar cerca de três milhões de Europeus. Continuo a achar que a reacção é desproporcional e nociva em termos globais para a saúde e a sobrevivência das pessoas. Haveria outras opções. Por exemplo, sabendo que 50% das mortes ocorreram em lares, muitos países poderiam ter tido mais sucesso através de um controlo apertado no acesso aos lares sem termos que restringir tão fortemente o resto da população. Muitos países asiáticos tiveram outras estratégias sem confinamento, que resultaram em mortes por ano equivalentes ou inferiores a mortes por pneumonia. No entanto, isso exigiu um controlo apertado da localização das pessoas infectadas e seus respectivos contactos. Nos países ocidentais, isso nunca foi permitido por uma questão de protecção da liberdade individual. Estranhamente, as pessoas não ficaram tão preocupadas com a falta de liberdade derivada dos confinamentos generalizados.

Vacinas

A disponibilidade das vacinas mais cedo que o esperado veio trazer uma onda de esperança para o fim da pandemia. Foi notável o esforço mundial para atingir esse objetivo. Mais notável foi a  técnica do RNA mensageiro que permite criar uma vacina muito mais rapidamente. Várias das vacinas desenvolvidas apresentam taxas de eficácia perto dos 95%. Ainda não é totalmente claro se a vacina continua eficaz perante a variante delta. Vários estudos permitem indicar que a eficácia mantém-se alta, mas ainda há poucos dados para que o permita confirmar. O seguinte gráfico permite observar o número máximo de mortes em Portugal em função da real eficácia da vacinação (usando o ponto de situação de vacinação a 25 de Agosto – ver aqui). A primeira barra a vermelho mostra-nos esse valor se ninguém fosse vacinado (a zona preta são os que já faleceram).

Podemos verificar que, se a eficácia da vacina se mantiver nos 90%/95%, o número de mortes por Covid será semelhante ao das pneumonias. No entanto, se ela for de 85% ou ainda menos, já estaremos a falar de valores superiores. Caso tal aconteça, resta saber se a população pretende continuar com medidas de restrição e confinamentos ou se aceita esta doença como mais uma causa de morte a combater, mas continuando a viver “normalmente”.

É de notar que se a vacinação tivesse sido administrada somente às pessoas com mais de 50 anos (barras a laranja), o número de mortes seria praticamente igual. Na faixa etária dos 0 aos 19 anos, o número de mortes máximo sem vacinação corresponderia a cerca de 14 mortes. Essas mortes acontecem em crianças/adolescentes com condições de saúde fraca. Faz sentido vacinar esse grupo de risco, mas não as cerca de dois milhões que não apresentam nenhum risco.

No entanto, outra questão também importante é a afluência aos hospitais e como é que o SNS poderia colapsar com uma afluência extrema devido a um surto de Covid. Infelizmente, devido ao aparecimento da variante delta, existem indicações em como a carga viral das pessoas vacinadas é semelhante à das pessoas não vacinadas, embora por um período mais curto. Portanto, é provável que não iremos atingir imunidade de grupo. Assumindo que a eficácia da vacina corresponde à eficácia em impedir a hospitalização, e usando os dados de ocupação de cuidados intensivos de 2020/2021 (até 25 de Agosto 2021), obtemos o seguinte gráfico:

De notar que esta análise é muito simplista, principalmente porque é praticamente impossível que qualquer um dos possíveis cenários tenha um desenvolvimento temporal semelhante ao de 2020/2021 (representado a azul). No entanto, o mesmo permite-nos fornecer alguma sensibilidade à temática. A linha preta representa o valor máximo de camas disponíveis para doentes Covid (255 segundo a DGS). Esse valor tem em conta que é necessário deixar outras camas livres para outros patologias. Podemos verificar que de Novembro 2020 a Março 2021 (linha azul) esse valor foi amplamente ultrapassado. Esta é, de facto, a maior preocupação que motivou vacinar uma grande parte da população. Usando o valor de eficácia da vacina de 95%, podemos verificar que a linha verde está bem abaixo do limiar o que é uma boa notícia. No entanto, uma eficácia de 80% já nos leva para situações próximas das que vivemos no inverno passado. Também explorei um simulador que contém modelos epidemiológicos de vários estados dos Estados Unidos. Escolhi Ohio por ter uma população, densidade populacional e tamanho de cidades semelhantes a Portugal. Os resultados mostram que sem restrições, com vacina e tendo em conta a variante delta, iremos certamente exceder a capacidade nacional de camas de cuidados intensivos. Mas modelos são modelos e sujeitos a grandes incertezas. Penso que essa incerteza é a razão que levou muitos países a decidir vacinar também as crianças. O objectivo é evitar ao máximo a propagação da doença. Tendo em conta que as crianças/adolescentes em questão representam somente 10% da população e que as pessoas vacinadas continuam a transmitir o vírus de forma muito significativa, pergunto-me até que ponto esta decisão terá um impacto significativo no controlo da epidemia. Embora ache extremamente improvável que a vacina possa criar problemas de saúde nas crianças, ela não foi ainda testada a longo prazo. O risco não é nulo. Vacinar crianças que têm uma saúde debilitada faz sentido. Vacinar crianças saudáveis para reduzir de forma marginal a transmissão do vírus é completamente desnecessário.

Censura e liberdade

Outro ponto que abordo é a liberdade de expressão e o direito de não se vacinar. Temos assistido a muitos debates e opiniões de várias partes. É triste notar que os extremismos aparecem de forma quase infantil e nociva para a sociedade. Por um lado, se alguém contestar as medidas, a mortalidade da Covid e a eficácia das vacinas, é logo catalogado de negacionista. Por outro lado, se alguém fizer o contrário é acusado de, ou fazer parte de uma grande conspiração, ou então de ser manipulado pelos conspiradores. O mundo não é preto ou branco. A discussão saudável é aquela em que ambas as partes procuram alcançar a verdade e compreender o outro lado em vez de alimentar os seus egos e crenças baseados em extremismos que só existem na mente dessas pessoas. Todavia, além da pressão nas redes sociais para estarmos todos alinhados na vacinação para todos, assisti incrédulo à censura que o jornal Público fez ao Dr. Pedro Girão pelas seguintes justificações:

  • “Pelo tom desprimoroso e supérfluo usado pelo autor em relação a várias personalidades da nossa vida pública”;
  • “Pelo seu teor … tende a instigar a ideia de que a vacina contra a Covid-19 é “uma experiência terapêutica” sem validade centífica”.

Eu reli o artigo várias vezes e tive dificuldade em perceber estas justificações. Em relação ao primeiro ponto, já vi tons bem piores do que estes nos últimos 20 anos sem que tenha sido motivo de censura. Quanto à instigação à falta de validade científica da vacina, o artigo foca-se na questão das crianças e adolescentes e sobre a motivação de as vacinar para proteger os mais idosos. Existem vários artigos que afirmam que as pessoas vacinadas continuam a propagar a doença (ver este). Mas mesmo que o Dr. Pedro Girão afirmasse barbaridades científicas, aquele texto era um artigo de opinião. O Jornal Público não é uma revista científica que deve filtrar os artigos aceitáveis (e nem tem competências para tal). Esta censura é totalmente inaceitável e um perigoso indício de uma possível mudança da sociedade onde os extremismos ganham força.

Apesar de Portugal ser um dos países com maior taxa de vacinação, continua a haver pessoas que não se vacinam. Umas porque acham que a vacina é perigosa, outras porque gostam de desenvolver a imunidade de forma natural, outras porque acham que a vacina foi feita para nos controlar … Independentemente das razões, há sempre argumentos curiosos de ambos os lados. Os que são a favor da vacina e para quem o perigo de morte por Covid é extremamente baixo dizem que têm medo dos efeitos a longo prazo da Covid e por isso preferem vacinar-se. Os que são contra a vacina dizem que têm medo dos efeitos a longo prazo  e preferem o risco da doença que “já conhecem” do que o risco da vacina que não conhecem. O que torna a nossa sociedade rica e profunda é esta diversidade de opiniões e estilos de vida. A aceitação do outro é um pilar fundamental da convivência e devemos congratular-nos por isso em vez de criticar de forma agressiva como o outro decide viver.

O futuro

O futuro é incerto mas estou convicto que, cedo ou tarde, este vírus tornar-se-á endémico. Seja graças às vacinas, seja graça à imunidade que as pessoas vão desenvolvendo ao contrair a doença, ele passará a fazer parte da nossa sociedade. Infelizmente, além das muitas pessoas que já morreram, muitas outras irão morrer. Este inverno vai ser a prova de fogo da vacina. No meu primeiro artigo, estimei um número máximo de 50 mil pessoas se nenhuma medida fosse tomada. Agora, graças à vacina, aponto para um valor bem mais pequeno, provavelmente entre cinco mil e 10 mil. Mas estaremos nós dispostos a que morram, por exemplo, sete mil pessoas por ano devido à Covid? Bem, a pneumonia, que é contagiosa, mata entre cinco mil e seis mil pessoas por ano e nunca chegámos a confinar por causa disso. E se a Covid matar o dobro? Qual o valor limite para voltar a confinar?

Outro ponto a abordar é que eu considero extremamente provável que os internamentos em cuidados intensivos aumentem bem acima do razoável mesmo que o número de mortes se situe em valores semelhantes aos da pneumonia. E qual será a nossa reacção? Qual deveria ser a nossa reacção? Quantas pessoas poderão morrer de outras causas porque o SNS ficou demasiado sobrecarregado com a Covid? Podemos nós prevenir esse sobrecarregamento focando-nos mais em proteger os lares em vez de confinar de novo? Temo que a nossa reacção mundial vá ser outra vez emocional e precipitada. A pergunta mais profunda é quantas pessoas irão morrer em Portugal nos próximos 20 anos porque o SNS se vai tornar mais pobre? O desenvolvimento da crise económica é também uma incógnita, sendo que o PRR poderá atenuá-la significativamente.

Por agora vivemos numa almofada financeira e sobretudo emocional que nos ilude em relação ao nosso futuro. Já estamos presos à parede morrendo de fome lentamente. Na nossa escolha entre a espada e a parede, iremos nós ficar com o pior dos dois mundos? As infelizes e incontornáveis mortes e o cada vez mais insuportável empobrecimento das famílias? Não tenho resposta para isso, mas parece-me que infelizmente é o que irá acontecer. Veremos… Só futuro o sabe. Só o futuro tem razão.