De há uns anos para cá os activistas antirracistas têm reivindicado, com insistência, a alteração dos programas e conteúdos da disciplina de História. Que querem eles suprimir e que querem que se ensine, e porquê? Basta seguir com atenção as opiniões de alguns dos mais notórios activistas para ficarmos devidamente esclarecidos.

Recentemente o Expresso perguntou a Beatriz Gomes Dias se seria preciso reescrever a História. A activista e deputada do Bloco de Esquerda respondeu afirmativamente e explicou-se. Segundo ela “a História que foi escrita é uma narrativa mitológica que cristalizou uma memória seletiva. Essa narrativa veícula uma versão edulcorada do passado, que conserva os aspetos que considera dignos de glorificação e oculta toda a opressão de que esse passado foi feito”.

Lidas à letra estas afirmações de Beatriz Gomes Dias podem induzir em erro. Afirmar que “a História que foi escrita” é “uma narrativa mitológica” parece um disparate, tal como garantir que essa História “oculta toda a opressão”. Nada disso é verdade, mas eu suponho que Beatriz Gomes Dias não estava a pensar na História que os historiadores escrevem mas sim na que se ensina. E é essa, tal qual aparece nos manuais da disciplina, no ensino secundário, que a deputada quer à viva força mudar.

De que forma? Na sua resposta ao Expresso e numa entrevista posterior ao mesmo jornal a activista deixa várias indicações. Não quer que se glorifiquem os Descobrimentos nem que se apresente a expansão marítima portuguesa “como um acto de globalização e inovação”. Não quer que se coloquem os portugueses como “pioneiros desse processo” sem, em simultâneo, acentuar a sua “necessidade de explorar os territórios (descobertos), saquear as matérias primas e escravizar as pessoas destes territórios”. Quer, também, que se aborde a origem daquilo a que chama “supremacia branca” e a correspondente “inferiorização e desumanização” dos negros, correspondência essa que Beatriz Gomes Dias acha que decorre em linha directa do tráfico transatlântico de escravos e que, não obstante a abolição da escravatura, se terá, em sua opinião, prolongado até ao presente. Quer destruir aquilo a que chama “mitos lusotropicalistas da vocação miscigenadora e do colonialismo suave” — que relaciona de forma muito tendenciosa com o Estado Novo, quando, na verdade, essas ideias e sentimentos são muito anteriores.

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Poucos dias depois de Beatriz Gomes Dias se ter pronunciado o também activista Mamadou Ba veio, no mesmo comprimento de onda e de uma forma ainda mais clara, afirmar o seguinte na sua página de facebook: “Aos que nos acusam de querer reescrever a história, respondemos que queremos muito mais. Porque, merecemos muito mais, queremos reinventá-la para que todo o mosaico étnico da sociedade portuguesa nela se reflita bem e com dignidade”.

O objectivo é, pois, assumidamente, reinventar a História. Para pessoas como Beatriz Gomes Dias, Mamadou Ba e muitas outras a História enquanto campo do saber e memória a transmitir é mitologia, e isso, a seus olhos, legitima duas coisas: em primeiro lugar, a rejeição dessa (suposta) mitologia; e, em segundo lugar, a sua substituição por uma outra, mais adaptada aos interesses e preferências dos grupos de pressão de que fazem parte.

Ora, como sabemos a História não é mitologia e o seu ensino não deve ser feito à vontade do freguês. É verdade que esse ensino implica sempre uma seleção — nenhuma história pode contar tudo, muito menos ao nível do ensino secundário. Mas o que importa é que a narrativa seja rigorosa e equilibrada. E aí radica a principal objecção às reivindicações dos activistas porque a narrativa que querem impor não respeita essas duas exigências básicas. Em primeiro lugar porque querem suprimir ou dissolver as dimensões positivas dos Descobrimentos (a façanha, a descoberta, a inovação, a benevolência) para acentuar, em seu lugar, a extorsão, a violência e outros aspectos negativos ou sangrentos da expansão portuguesa; em segundo lugar porque os activistas têm demonstrado, ao longo destes anos de debate público, que não têm o mínimo respeito por factos e números. Usam-nos de forma bombástica, para produzir um efeito político, mas sem qualquer exactidão. Pense-se, por exemplo, na afirmação por eles frequentemente repetida de que Portugal terá transportado quase seis milhões de escravos de África para as Américas. Já mostrei por várias vezes que essa afirmação é falsa pois esses quantitativos correspondem aos números agregados de dois países (Portugal e o Brasil independente), mas é o mesmo que clamar no deserto. Os reivindicantes da nova narrativa histórica continuam a martelar nessa tecla, que sabem ser falsa — se non é vero é ben trovato — e aplaudem quando ela é reproduzida lá fora.

Porquê esta insistência, este apego a um número errado? Porque falar em seis milhões lhes dá jeito já que inflacciona o horror e sugere uma analogia com os seis milhões de judeus mortos no Holocausto, induzindo, por essa via, o mesmo tipo de juízos de valor e de criminalização. O esforço para fazer uma ligação entre ambas as coisas é muito óbvio e julgo que bastará um exemplo para ilustrá-lo. Numa entrevista há pouco mais de um ano Joacine Katar Moreira assumiu, como vários outros activistas têm assumido, o desejo de alterar o ensino da História em Portugal e apontou aspectos concretos do que pretende ver mudado. Disse, nomeadamente, que quer que a palavra escravatura seja escrita em maiúscula: “Por que razão” — perguntou — “continuamos a escrever ‘escravatura’ com ‘e’ minúsculo se aceitamos escrever ‘Holocausto’ com ‘h’ maiúsculo?”.

Poderá parecer a muita gente que pretensões como estas são inócuas e que poderiam facilmente ser atendidas. Todavia, são coisas que contendem com a razoabilidade e falseiam a verdade histórica. Pegue-se, a talhe de foice, nesta tentativa de fazer uma analogia ou equiparação entre a escravatura e o Holocausto. É incontestável que foram ambas situações horrorosas que levaram sofrimento e morte a muitos homens, mulheres e crianças. Mas a analogia detém-se aí. Entre meados do século XV e meados do XIX embarcaram-se, nas costas de África, cerca de 12,5 milhões de pessoas escravizadas e cerca de 15% dessas pessoas morreram na viagem através do Atlântico. Outros 15 a 20% não terão resistido aos primeiros anos nas Américas. Mas, no que se refere ao tráfico transatlântico, e ao contrário do que geralmente se pensa, muitas dessas pessoas morreram por razões que escapavam à vontade e ao controle dos transportadores, e que não tinham que ver directamente com as terríveis condições a bordo, mas, como Joseph Miller mostrou, com doenças contraídas ainda em África. Era frequente que ao cabo de poucos dias de viagem marítima surgissem entre os africanos vários casos do chamado mal de Luanda — isto é, escorbuto — que não poderiam atribuir-se a factos ocorridos a bordo, pois as manifestações clínicas da doença só aparecem após meses de carência de vitamina C. O objectivo do tráfico negreiro era transportar as pessoas através do Atlântico, vivas, se possível, para poderem ser vendidas no ponto de destino. Pelo contrário, o objectivo do Holocausto era, como toda a gente sabe, matar as pessoas. São esses dois horrores, de natureza claramente diferente, que devem ser explicados aos alunos do secundário. A “Solução Final” dos nazis foi um genocídio e um assassinato em massa, um crime perpetrado por gente que montou e utilizou uma estrutura industrial para eliminar pessoas. Misturar o Holocausto com a escravatura, equiparar ambas as coisas através da subtileza de escrever as duas palavras em maiúscula, ou por outro estratagema qualquer, é convocar ardilosamente para a avaliação histórica da escravatura ideias e sentimentos que associamos à matança dos judeus, o que é abusivo e uma distorção da verdade.

São frequentemente distorções destas, coisas que à primeira vista parecem plausíveis ou de pouca importância, mas que dão uma tonalidade falsa ao que aconteceu, que os activistas querem introduzir nos conteúdos da disciplina de História. Ora, o ensino da História não procura dar uma visão militante, nem panfletária, do passado, mas sim um olhar justo e bem informado sobre o que aconteceu e o Governo deve velar para que assim continue a ser, apesar da pressão dos activistas dentro e fora do país. De facto, Beatriz Gomes Dias, Joacine Katar Moreira e Mamadou Ba não estão sozinhos na sua cruzada. Nos dias que correm há um enorme esforço para reinventar a História, para a tornar politicamente correcta ou politicamente “útil” e o mais alarmante é que isso conta com a passividade, o silêncio ou até mesmo com a conivência de muitos historiadores. Não obstante, os nossos governantes têm o dever e a enorme responsabilidade de resistir a este assédio político porque a História que se ensina numa sociedade livre e aberta não é mitologia nem deve servir para fazer lavagens ao cérebro. Os activistas não querem o ensino de História, mas sim uma versão invertida e tenebrosa do que eram os conteúdos da disciplina no Estado Novo. Querem passar o negativo desse filme e o Governo não deve consentir uma coisa dessas.