Eu estive na manifestação de sábado, em Lisboa. Felizmente para mim, enquanto professor, não estou longe de casa como muitos milhares de professores que só veem a família ao fim de semana; não estou retido no 4.º ou 6.º escalão por falta de quotas (tive a sorte que o meu Excelente não caísse abaixo do Muito Bom) como tantos professores que engrossam as fileiras dos que aguardam vaga para progredir na carreira; não sou contratado, ano após ano, durante décadas, sem saber onde viver no ano seguinte, mas conheço essa angústia pois já por lá passei; já fui, mas já não sou sindicalizado, pelo que não estive lá movido por nenhuma mobilização sindical. Estive lá por uma causa, que deve ser a de todos os portugueses – A Educação, o Ensino Público e o futuro deste País. Talvez este tenha sido também o motivo de muitos dos que alinharam comigo na manifestação de sábado.
Não foi uma manifestação de motivação salarial apenas, mas também. E não temos que nos envergonhar por reclamar melhores salários, porque é justo. Também aqui, estou melhor que tantos professores que, com magros salários, têm a casa por pagar e uma renda noutro ponto do país onde trabalham (é violento, já passei por isso). Para ilustrar essa justeza, nem preciso de usar exemplos dos professores que estão pior que eu, uso mesmo o meu caso concreto: detentor de uma Licenciatura científica, dois anos de Formação Pedagógica complementar, um ano de Especialização em Orientação Educativa, Mestrado em Ensino da Física, Formador de professores, inúmeros trabalhos publicados, inúmeras comunicações em conferências internacionais e até com alguns prémios no campo da Educação, mais de trinta anos de carreira, e com Doutoramento em curso, pergunto se não é legítimo aspirar a chegar ao topo da carreira, sabendo que isso agora é uma impossibilidade técnica, para mim e para a maioria dos meus colegas, por conta das alterações e congelamento de carreira, rebatendo deste modo a ideia, muitas vezes invocada, de que “nem todos podem lá chegar, como em todas as profissões, e que o número de docentes que atingiram o último escalão, nos últimos anos, tem sido enorme”. Se no momento alguns professores lá chegaram, a frequência com que tal vai acontecer no futuro irá cair drasticamente. Com mais de trinta anos de serviço, recebo cerca de 1400 € de salário líquido mensal e pergunto se todo o investimento que fiz, e continuo a fazer, quer financeiramente (nunca a carreira me deixará recuperar sequer as propinas do doutoramento), quer em trabalho de investigação e atualização científica, quer no desenvolvimento de atividades didáticas em horas incontáveis roubadas à família e ao descanso, pergunto se não é legítimo reclamar melhor salário? Devo envergonhar-me por isso?
Muitas vozes questionam os professores pelo facto de terem contribuído para a presente maioria absoluta com o seu voto, pelo que devem por isso aguentar, como se a democracia fosse uma doença. Provavelmente a razão da escolha não foi a convicção nas políticas de Educação deste partido, mas por acreditarem que as alternativas eram muitíssimo piores na defesa da Escola Pública. Lembro que a democracia não se deve limitar ao voto de 4 em 4 anos; a democracia constrói-se, dia a dia, e não há nada mais democrático do que, atingido o ponto de rutura, as pessoas saírem à rua para gritarem BASTA. Já tive oportunidade de conversar quer com Nuno Crato, quer com João Costa e, por estranho que pareça, gostei imenso das curtas conversas que tive com ambos, apesar da perspetiva diametralmente oposta que têm para a Educação, pelo que não diabolizo nenhum deles, mas não posso tolerar o deskilling em curso no que respeita aos professores, nem o prejuízo que está a causar à Educação.
Esta manifestação não foi mobilizada pelo Mário Nogueira (presumo que não tenha sequer estado presente), foi um movimento quase inorgânico, despoletado pelo sindicato S.TO.P. que penso tem apenas centenas de filiados (acredito e espero que venha a ter muitos mais), mas organizado regionalmente por professores, o que tornou esta manifestação mais especial ainda. Nestes momentos juntam-se sempre alguns políticos (vi lá vários), seja para colher benefício político e simpatia dos manifestantes, seja por estarem realmente solidários com a causa, mas isso não deve merecer sequer uma nota de rodapé. Estou certo de que estavam ali votantes de todos os partidos políticos, incluindo do que se encontra na governação do país.
Em suma, importa fazer profundas alterações na Educação porque é a principal alavanca para o desenvolvimento das nações. Temos uma classe docente com uma idade média acima dos 50 anos, drenada nas suas forças e esgotada em mil e uma solicitações nas escolas, as quais não existiam nos tempos em que fomos alunos, e não se pode esperar de um professor sexagenário (uma boa percentagem de professores no ativo tem hoje mais de 60 anos) um nível de desempenho face aos enormes e crescentes desafios impostos à Escola, como não exigimos a um futebolista de 40 anos que tenha a mesma performance que um atleta de 20 anos. Ainda usando o mesmo exemplo, assim como não dizemos que o jogador trabalha semanalmente os 90 minutos do jogo, também o professor não trabalha só as 22 horas que leciona semanalmente, e ultrapassa, talvez em dobro, as 35 horas semanais que constam do seu horário (essas esgotam-se provavelmente em reuniões e formação contínua).
Face às políticas dos sucessivos governos, hoje temos falta de professores e, pior ainda, temos falta de candidatos a professores que permitam substituir aqueles que em breve, esgotados, irão para a aposentação. Esta situação não se resolve com pensos rápidos; precisa de planeamento antecipado, e principalmente de investimento na Educação e nos seus agentes, tornando a carreira atrativa ao ponto de mobilizar novos candidatos. Precisa de libertar a escola desse lastro de burocracia que é um peso morto, que drena a energia de quem lá trabalha e em nada beneficia os alunos e as aprendizagens. Não é abrindo vagas ou Cursos de Educação nas Universidades que se cativam candidatos. Aliás, muitas vezes os Cursos de Educação fecham precisamente por falta de candidatos. Interrogo-me porque motivo, nos dias de hoje, um jovem haveria de querer ser professor? Andar sem rumo, mal pago e enxovalhado pela sociedade e pela tutela. Quantos professores, mesmo com muitos anos de exercício, abandonam o Ensino em favor de outros ofícios que lhes oferecem melhores condições? Outros, só não o fazem porque chegaram a uma idade que constitui um ponto sem retorno, já que a carreira está longe de ser hoje aquilo que foi contratualizado quando “abraçamos” este ofício.
Voltando ao plano da Educação, que era uma das razões da manifestação de sábado, não se leia nas minhas palavras que quero o modelo tradicionalista e antiquado. Quem me conhece sabe o quanto desejo uma Escola enquadrada com os nossos tempos, com o foco nas exigências do futuro. Uma escola que sirva os interesses da sociedade, a par do desenvolvimento dos alunos, seja na sua formação cívica, formação humana, formação científica, seja nas competências que são requisitos necessários para responder às necessidades do futuro, como tantas vezes a OCDE relembra. Mas não podemos exigir aos professores que estejam permanentemente a monitorizar, a prestar contas em ato contínuo do seu trabalho e da avaliação dos seus alunos. Seria como pedir a um chef de cozinha que estivesse permanentemente a reportar a todos os clientes do restaurante em que ponto está a confeção dos respetivos pratos. Há um tempo para tudo, e é preciso deixar a massa levedar.
Lembro ainda aos pais de alunos em idade escolar que a Escola não é um depósito de alunos. É um espaço de desenvolvimento, de construção, de socialização, de aprendizagens. Deve ser assim entendido e não como aquela ideia peregrina da “Escola a tempo inteiro”. Há vida fora da Escola, há aprendizagens fora da Escola, e há socialização e desenvolvimento fora da Escola. Pais, deixem respirar os vossos filhos; não façam da Escola uma prisão. Não os levem à porta da entrada da Escola pela manhã. Eles precisam de aprender a usar transportes públicos, ler placards, atravessar a rua, confraternizar com os amigos, despertarem para todo um mundo que os rodeia, mas de forma autónoma. Não roubem essa experiência de desenvolvimento aos vossos filhos, eles irão mais tarde acusar essa lacuna em várias dimensões das respetivas vidas.
São estas as reflexões que partilho convosco e que me conduziram a Lisboa, acompanhando todos quantos sentem a urgência de produzir mudanças na Educação, de valorizar com atitudes o empenho e dedicação daqueles que mantém a Escola de pé, com turmas que congregam alunos de diferentes nacionalidades, diferentes necessidades, diferentes características. Professores focados em dar resposta às fragilidades da nossa sociedade que os alunos trazem consigo para a Escola.
Não reclamo, de forma alguma, a cabeça de João Costa. Acredito que tem boas ideias para a Educação (partilho algumas), mas acho que é o momento de manifestar que nem tudo está a correr bem na Educação, e é tempo de fazer uma profunda análise e perceber que esta é uma causa pública, e que os professores merecem a colaboração e respeito de todos, porque são uma peça fundamental na construção da sociedade e só eles poderão alicerçar as bases do futuro.