1 A causa da legalização da eutanásia instrumentaliza um dos mais profundos, nobres e distintivos sentimentos humanos: a compaixão.
Se o que se diz à sociedade (e à saciedade!) é que a eutanásia é um ato de compaixão para com quem sofre, rotulando-se de ‘insensível’ e ‘incompassivo’ quem se lhe opõe, restará pouco a este debate antes da rendição dos que foram, progressivamente, sendo tomados por inumanos. Há, porém, um enorme e perturbador equívoco neste ‘axioma’ inconsciente (um axioma é uma proposição tida como certa e evidente e, por isso, inquestionável, isto é, nunca posta em questão). A compaixão mata-se se mata o outro que está em sofrimento. A compaixão, enquanto atitude de genuíno ‘padecimento com o’ outro, contradiz-se se incluir a possibilidade de o matar. Matá-lo elimina, bem certo, o sofrimento, mas na medida em que elimina aquele que sofre, quando lhe cabia procurar todos os meios legítimos ao seu alcance para impedir que ele sofresse, garantindo-lhe a sobrevivência após o fim do sofrimento.
Para compreender o equívoco em que o ‘axioma’ denunciado no início se suporta, comecemos por definir de que falamos ao referir-nos à eutanásia: antecipação deliberada da morte de alguém, a pretexto de motivações que suportam o seu pedido, e concretizada por outrem, a quem cabia o cuidado e acompanhamento.
Não nos parece suscitar dúvidas uma tal definição, pelo que se nos afigura legítimo partir em busca de uma maior determinação do equívoco anteriormente denunciado.
2 Nenhum de nós é apenas ‘si próprio’, mas nó de relações. Em cada um de nós há uma participação total e ‘fractal’ na humanidade, presente em todos e em cada um dos humanos. A vida de cada humano é um direito, mas também um dever de cuidado para consigo mesmo. A humanidade que habita cada um de nós apela a que dela cuidemos. Não é, por isso, casual o modo como a declaração universal dos direitos humanos define os direitos humanos, entre os quais tem valor de direito fontal o direito à vida.
Veja-se como são, ali, definidos os direitos humanos e retiremos dessa definição duas consequências.
A declaração afirma, no seu preâmbulo: ‘Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (…)’ (recolhido de https://gddc.ministeriopublico.pt/ – consultado em 6 de abril de 2023)
Desta primeira afirmação preambular destaquemos duas notas:
- a primeira nota: os direitos humanos são ‘inalienáveis’, o que significa que ninguém (nem o próprio) pode prescindir deles. A esta luz, matar ou matar-se nunca poderá ser um ‘direito’ humano.
- a segunda nota: é a dignidade humana que antecede a liberdade, da qual é fundamento, e não o contrário. Diz-se, ali, com clareza, que é ‘o reconhecimento da dignidade’ que se ‘constitui’ como ‘o fundamento da liberdade’. Facilmente se concluirá que todo o exercício de liberdade (habitualmente equiparada a ‘autonomia’) deve submeter-se ao respeito pela dignidade, pois não é a liberdade que fundamenta a dignidade, mas, antes, a dignidade que fundamenta a liberdade.
3 Acrescentemos a esta nota de âmbito jurídico, uma outra, de natureza antropológica, que nos foi recordada pelo Cardeal Tolentino de Mendonça, no já célebre discurso de 10 de junho de 2020.
Recordava-nos, então, que o primeiro sinal de humanidade era um ‘fémur quebrado e cicatrizado’. Segundo a antropóloga Margaret Mead, o alcance deste fémur para a compreensão do que era ser-se humano estava na constatação de que só entre humanos verdadeiramente compassivos um fémur quebrado não significava entrega à morte, mas união para se sobreviver ao sofrimento, permanecendo vivos para além da dor.
No dizer do Cardeal Tolentino de Mendonça, [aquela] “antropóloga surpreendeu a todos, identificando como primeiro vestígio de civilização um fémur quebrado e cicatrizado. No reino animal, um ser ferido está automaticamente condenado à morte, pois fica fatalmente desprotegido face aos perigos e deixa de se poder alimentar a si próprio. Que um fémur humano se tenha quebrado e restabelecido documenta a emergência de um momento completamente novo: quer dizer que uma pessoa não foi deixada para trás, sozinha; que alguém a acompanhou na sua fragilidade, dedicou-se a ela, oferecendo-lhe o cuidado necessário e garantindo a sua segurança, até que recuperasse.” (Discurso de 10 de junho de 2020 – O que é amar um país)
A esta luz, a eutanásia não é um avanço, um progresso, mas uma enorme regressão a tempos de que nos pensávamos já livres e evolutivamente afastados. O caráter assético da morte, aparentemente indolor, oculta uma frieza e um desejo de rapidamente extinguir o sofrimento, eliminando do olhar aquele que sofre, sinais que se nos afiguram inquietantes. A eutanásia é ‘um método fácil de desistência’, como recordava uma enfermeira portuguesa de nome Verónica, em 2016, em entrevista dada à TSF. Esta enfermeira fora chamada, sem estar preparada, para participar na eutanásia de uma mulher de 70 anos, saudável, e perante a ‘filha em lágrimas’. As palavras de Verónica exprimiam um genuíno desejo, escondido na perplexidade com que vivera aquela eutanásia: o de que Portugal olhasse para o que se fazia em terras belgas, onde trabalhava, a fim de que por cá não se repetisse o mesmo erro.
Tais constatações deveriam ser mais do que suficientes para exigir do legislador uma preocupação maior com as suas decisões, percebendo que delas resultam sinais que a sociedade interpretará e incorporará no seu ‘adn’ coletivo. Uma sociedade em que cada um é deixado sozinho, entregue ao seu destino, retirará, mais cedo do que tarde, as conclusões para os diversos âmbitos do existir coletivo. Por muito que as posteriores decisões arbitrárias do legislador procurem minorar os efeitos da primeira decisão…
4 Defendo, aliás, que, a ser legalizada a eutanásia, estaremos perante um momento disruptivo de mudança de paradigmas bioéticos. No atual paradigma, que parte da objetividade do viver, toda a morte indevidamente antecipada tem de ser explicada e justificada, sob pena de punição. Não nos poderão fazer mal sem que o devam explicar. Após a subjectivização das causas da morte antecipada, essa explicação ficará entregue a expedientes burocráticos. É a esta luz que considero que o efeito de rampa deslizante não é, apenas, nem primeiramente, efeito de um progressivo relaxamento dos agentes e das fiscalizações (ainda que também muito se lhes deva), mas é, antes, inerente à disrupção aqui já operada. Se se inverter a antecedência da dignidade em relação à autonomia, conferindo à autonomia a precedência em relação à dignidade, então, a rampa já iniciou o seu deslizamento.
Não são, por isso, surpreendentes os dados que nos chegam dos países que a legalizaram (poucos, é bom que se afirme. Poucos e atingidos por fortes críticas internacionais sobre os abusos…). Segundo estudo orientado por Inghelbrecht, Bilsen e outros, ‘quase metade das enfermeiras admitem ter participado em eutanásias sem o pedido expresso do paciente’. (informação disponível aqui)
‘Na região da Flandres, em 2013, acelerou-se a morte sem pedido explícito a 1047 pacientes, correspondendo a 25% do total das mortes provocadas e a 1,7% do total de falecimentos.’ (Estes dados são recolhidos de ‘Eutanásia em cifras’, da responsabilidade de Bisbat de Sant Feliv de LLobregat e disponibilizados em Chambaere, Vander e outros) ‘Apesar de a legislação prever, na Holanda e na Bélgica, a notificação das eutanásias realizadas, em 23% dos casos, na Holanda, e em 47% nas Flandres, a eutanásia não é comunicada.’ (Dados recolhidos de ‘Eutanásia em cifras’, da responsabilidade de Bisbat de Sant Feliv de LLobregat e consultáveis aqui e aqui)
Entre os casos mais dramáticos de aplicação da eutanásia conta-se o de uma idosa que, na Holanda, foi eutanasiada contra a sua vontade, argumentando a médica, entretanto julgada, que ela manifestara essa vontade num primeiro momento. As imagens correram mundo, mostrando ter sido necessário agarrar a paciente para poder executar a eutanásia.
E poderíamos continuar a enumerar os sinais do deslizamento da rampa: a aplicação da eutanásia a alcoólatras, a deprimidos e, até, ao abrigo do chamado consentimento presumido. Em vários relatórios se refere a aplicação da eutanásia sem declaração explícita das suas vítimas, havendo registos de, em alguns anos, estes números chegarem à ordem das centenas. (Dados disponíveis aqui)
Não vivemos sós nem isolados. E se há abandono, violência, falta de compaixão, o papel das leis não consiste em legitimá-los, mas em contribuir para a sua superação. Incorporar a violência letal nos serviços de que se esperava cuidado e acompanhamento é dar a vitória ao que pretendíamos superar quando nos organizámos em sociedades e estas se configuraram em estados. Quando um de nós sofre, sofremos todos com ele; quando um de nós morre, morremos todos na sua morte. Acusar-nos-ão de idealismo os defensores da eutanásia, mas – caberá perguntar – não se construiu a humanidade sobre nobres ideais? Se um de nós, em nosso nome, matar alguém que lhe pede que termine o seu sofrimento, todos estaremos a ser cúmplices desse ‘matar’. Um Estado de Direito é assim que funciona. A porta entreaberta é já uma porta aberta. Entreabrir a porta da eutanásia, qualquer que seja o pretexto, encarregar-se-á de a levar a escancarar-se, mais cedo do que todos esperamos. E o que, hoje, é exceção tornar-se-á aceitável e tolerável, a breve trecho. Foi para isto que nos fizemos um povo?