O ponto de partida

Pela situação atual do país, em bom rigor pela situação difícil que uma parte dos portugueses enfrenta, a Lei da Eutanásia não estará no centro das suas prioridades. Verdade seja dita; nem deles, nem da generalidade dos intervenientes políticos ou das estruturas organizadas da sociedade civil que têm optado por ações meramente esporádicas. Uma espécie de “picar o ponto”, sem qualquer efeito imediato ou prático. Para os adeptos do “sim”, mexer no assunto é baralhar aquilo que está praticamente resolvido pela aprovação da Lei em sede do Parlamento. Acreditam que à terceira será de vez. Para os que se opõem à intervenção do Estado na morte medicamente assistida, há uma espécie de rendição à ideia da sua efetividade ou talvez uma crença de que a sua posição pode ser salva por ação do Presidente da República e do Tribunal Constitucional

Julgo que ambos os lados acreditam na sua inevitabilidade. Talvez o número de vezes que o tema foi debatido na Assembleia da República esteja na origem desse sentimento, de “fé” ou desânimo consoante o momento e o lado da barricada em que se encontram.

Pessoalmente o tema não é pacífico, reconheço. Desassossega-me e confronta-me nos meus valores morais e na realidade de ter assistido à morte lenta e dolorosa de pessoas muito próximas. Um tema que suscita dúvidas individuais em grande parte de nós e que pode pressupor profundas ruturas na conceção jurídica e ideológica das funções do Estado, tal como o conhecemos, deve ser decidido por uma ampla maioria de cidadãos. Explico porquê.

“Água mole em pedra dura…”

A aprovação da Lei no passado dia 9 de dezembro, por larga maioria parlamentar, é o culminar de uma história de 27 anos, embora só em 2016 o assunto tenha chegado à Assembleia da República por via de duas petições, uma a favor e outra contra a despenalização.  Em 2017 e 2018, são apresentados pelo PS e pelo Bloco de Esquerda os primeiros projetos-lei, os quais não passam na votação na generalidade. São, no entanto, os acontecimentos dos últimos 3 anos que verdadeiramente importam para centrar a reflexão sobre  o contexto em que nos encontramos: em 2019, PS, BE, PAN, “Verdes” e IL apresentaram iniciativas legislativas, sendo as mesmos aprovados na generalidade em fevereiro de 2020, após a rejeição da iniciativa popular da Federação Portuguesa Pela Vida, cuja petição para a realização de um referendo à despenalização da eutanásia tinha contado com 95 mil assinaturas.  Aprovada em votação global final em janeiro de 2021, Marcelo Rebelo de Sousa devolve-a ao Parlamento suportada no princípio da inconstitucionalidade declarado pelo Tribunal Constitucional. Em novembro de 2021, o Parlamento volta a aprovar o texto da Lei, o qual é vetado pelo Presidente da República. O tema passa para a nova legislatura formada após as eleições de janeiro de 2022, tendo o PS, BE, PAN e Iniciativa Liberal apresentados novos projetos que foram aprovados na generalidade a 9 de junho e na votação final a 9 de dezembro na Assembleia da República, cujo texto final foi agora remetido por Marcelo Rebelo de Sousa ao Tribunal Constitucional.

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 O conteúdo da Lei

Sobre o texto da Lei que se encontra em ponderação no “Constitucional”, parece-me que no essencial há dois princípios fundamentais nele consagrados que merecem destaque. Por um lado,  estabelece que a “morte medicamente assistida não punível” acontece “por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde”, que pode ser concretizada através do suicídio medicamente assistido, por autoadministração de fármacos letais, disponibilizados pelo médico ou profissional de saúde devidamente habilitado para o efeito; e a eutanásia, com administração dos fármacos pelo médico ou profissional de saúde. Por outro, através do recurso à morte medicamente assistida em casos de doença grave e incurável ou de lesão definitiva e de gravidade extrema e sem possibilidade de cura, que coloca a pessoa na dependência de terceiro ou de apoio tecnológico para a realização das atividades mais elementares da vida diária.

A legitimidade política

Para lá das questões técnicas e jurídicas subjacentes à Lei e sobretudo ao enredo do processo legislativo, talvez seja pertinente questionarmo-nos sobre a legitimidade dos deputados quanto à decisão de dar valor jurídico à prática da eutanásia, sem eufemismos, em Portugal. Também aqui, valerá a pena salientar que apesar da discussão do tema ser antiga e de ter passado por 3 eleições para a Assembleia da República, a verdade é que, de uma forma geral os partidos, sobretudo o PS e o PSD pela representação que têm, procuraram esconder dos seus programas eleitorais a sua posição quanto ao assunto, à exceção da eleições de 2021 em que o BE, PAN, Livre e CDS-PP deixaram clara a sua posição. Seria, será, aceitável que se considere que pela falta de transparência de grande parte das formações partidárias perante o eleitorado (nenhuma delas, tão pouco, procurou dar voz aos seus militantes), e confrontados com uma questão que suscita tantas dúvidas, que divide opiniões e que atravessa a sociedade em todas as suas dimensões, dar a vez à pronúncia dos portugueses, tal como se fez a propósito da legalização da prática do aborto, seria razoável.

Valorizar a democracia

Em Portugal, ao contrário de outros países (sendo a Suíça um bom exemplo na auscultação dos seus cidadãos) a prática de escutar os cidadãos é encarada como uma maçada, não só para as formações partidárias, mas sobretudo e mais preocupante para os próprios cidadãos que se manifesta, por exemplo, na atitude que têm perante os diferentes atos eleitorais em que está em causa o seu destino, mas esse seria um outro tema que não cabe aqui. Não me parece estranho pois não se cultiva essa prática nas instituições públicas e, acima de tudo, não se formam, nem se informam, os cidadãos de forma a fomentar esta atitude e a poderem ser exigentes quanto ao seu valor cívico na tomada de decisões. Razões que sustentam o facto de, sobre todas as decisões políticas tomadas e que dizem respeito à nossa vida coletiva, apenas o tema da regionalização ter sido alvo de referendo e a consulta sobre a despenalização do aborto ter sido arrancada a ferros.

Perante o panorama atual de uma democracia empobrecida e desacreditada pela falta de participação este poderá ser o momento ideal para contribuir para a sua revitalização através da convocação dos portugueses, depositando nas suas mãos a decisão de um tema controverso, coletiva e individualmente. Certamente, um debate sereno, embora apaixonado e apaixonante, poderá ser a oportunidade para o envolvimento e o esclarecimento feito de argumentação informada, e informadora, que sustente a opção com a fundamental garantia de estabilidade, independentemente da decisão. Esta foi a grande vantagem do referendo ao aborto. Independentemente da concordância ou não com o veredicto daquela pronúncia popular, a verdade é que a decisão é, hoje em dia, pacífica não sendo tema de debate ou de tentativas legislativas de retrocesso, mesmo no momento em que houve uma maioria parlamentar de direita. Por que não seguir este exemplo?

A leitura dos artigos de opinião de Ricardo Sá Fernandes, “A favor da eutanásia, de mais debate e do referendo”, e de Pedro Roseta, “Eutanásia, razões para um referendo”, com posições muito distintas quanto à despenalização da eutanásia, são um exercício interessante do valor que ambos atribuem à importância de devolver a decisão aos cidadãos.

Decidir por referendo é determinar que qualquer alteração à decisão tomada por vontade dos cidadãos tenha de voltar a ser por estes confirmada.

O que fazer?

Chegados aqui, estamos numa fase onde não vale a pena refugiarmo-nos nos subterfúgios argumentativos sobre se a vida é ou não referendável, se a rede de cuidados continuados é insuficiente, se o Estado tem o direito de legislar sobre o suicídio medicamente assistido ou se este ou aquele artigo da Lei é inconstitucional, até porque a posição dos juízes do mais importante tribunal do país não é consensual. Acreditem que tenho noção da importância de todos estes pontos, mas se reduzirmos a discussão a estes fatores estaremos a contribuir para a clivagem entre nós, para o arrastar do processo e, sobretudo, a permitir que num outro momento, com uma configuração parlamentar e conjuntura política diferente, se possa voltar atrás.

Resolvamos isto de uma vez por todas, convocando os portugueses. Esta é a sua vez.  E agora é a nossa vez de suscitar junto da Assembleia da República a discussão do tema do referendo por via de uma petição popular. Vamos a isso!